O escândalo dentro do golpe
Brasil 247 – Por Paulo Moreira Leite – 11 de Fevereiro de 2017
A noção de que nunca é tarde demais para se fazer justiça faz todo sentido diante da decisão de Edson Fachin em reabrir investigação sobre Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney, com base nas escandalosas conversas gravadas pelo ex-senador Sérgio Machado entre janeiro e fevereiro de 2016. Elemento essencial para se compreender o que se passou no país em tempos recentes, o caso ficou adormecido por um ano em Brasília. Voltou aos debates quando já não podia atrapalhar o golpe contra Dilma Rouseff.
Divulgados pela Folha de S. Paulo na última semana de maio de 2016, num conjunto de reportagens de Rubens Valente de valor histórico, os depoimentos constituem a primeira e mais vigorosa denúncia sobre a fraude que levou ao afastamento de Dilma Rousseff.
Recheadas de fatos chocantes, as gravações permitem entender um ponto essencial. Se o golpe contra Dilma foi alimentado por interesses econômicos e políticos de vulto, como está comprovado pelo criminoso projeto de regressão social e entrega das riquezas do país a interesses estrangeiros encaminhado pelo governo Michel Temer, o golpe parlamentar foi favorecido por uma articulação destinada a salvar a pele de grandes raposas do Congresso ameaçadas pela Lava Jata. Muito além das “pedaladas fiscais” que serviram de pretexto inicial , havia uma tentativa de “estancar a sangria”, como admitiu Romero Jucá.
Num despacho de 14 de junho de 2016, o próprio ministro Teori Zavaski, responsável pela Operação Lava Jato no STF, deixou claro que acreditava que as gravações apontavam para um “dos mais graves atentados institucionais” de nossa história.
Na letra fria da lei, os fatos apontam para dois crimes, conforme esclareceu o constitucionalista Pedro Serrano, em entrevista ao 247. “O primeiro, neste caso o menos grave, é obstrução da Justiça. O segundo, mais grave: desvio de finalidade.”
A gravidade deste crime, que assume um caráter absurdo quando se recorda que estava em jogo a democracia do país, consiste em usar os poderes públicos — a queda de uma presidente — para obter um benefício privado, que foi escapar de investigações que batiam à porta dos interessados.
Nove meses depois da publicação das reportagens de Rubens Valente, é impossível deixar de reconhecer que as revelações contidas nas gravações poderiam ter sido de utilidade extrema para se apurar os bastidores daquele processo que Joaquim Barbosa definiu como “encenação” do Congresso.
A primeira reportagem chegou às bancas em 23 de maio de 2016, duas semanas depois da Câmara aprovar o afastamento de Dilma. Embora o processo estivesse em fase avançada, havia prazo suficiente para o esclarecimento dos fatos antes da decisão fatídica, em 31 de agosto, quase três meses depois.
Mesmo evitando qualquer especulação sobre o que poderia ter acontecido, é obrigatório registrar algumas considerações. Caso se tivesse resolvido apurar aquilo que as gravações mostravam, o calendário original do impeachment seria outro, obrigatoriamente mais alargado. Maestro da votação no Senado, Renan estaria na condição de suspeito e mesmo acusado, enfraquecido demais para exibir o desembaraço apresentado desde o início dos trabalhos. Não há dúvida, ainda, que uma investigação sobre o papel de Jucá, Sarney e Renan no “atentado institucional” de que falou Teori mudaria a relação de forças no Congresso, complicando o discurso moralizador de uma oposição que desde a derrota nas urnas procurava um atalho para afastar Dilma e manter o governo sob silêncio forçado
O impacto brutal das gravações pode ser medido pelo destino de um personagem, Romero Jucá. Autor do depoimento mais comprometedor, ele sobreviveu apenas 12 dias no cargo como ministro de Temer — pois era óbvio que sua permanência, numa situação tão explosiva, seria um obstáculo pesado a transformação do então presidente interino em titular efetivo.
A decisão de Edson Fachin abre uma oportunidade bem vinda mas a herança deixada até agora não é animadora, como mostra um retrospecto do que se fez e do que não se fez para apurar os fatos já conhecidos. .
Em fevereiro e março de 2016, em busca de um acordo de delação premiada para escapar de acusações que envolviam sua gestão na Transpetro, uma das empresas da Petrobras, Sérgio Machado gravou 7 horas de conversas com o trio Jucá-Renan-Sarney, em encontros individuais e, num ocasião, numa rodada a quatro vozes. Os diálogos poderiam ter sido um bom início de investigação mas nem a Polícia Federal nem o Ministério Público nem o STF mostraram o mesmo empenho exibido em situações anteriores.
Em novembro de 2015, três meses antes das primeiras gravações de Sérgio Machado, o senador Delcídio do Amaral (PT-MS) foi preso como alvo da Lava Jato. Com auxílio dos investigadores, um dos filhos de Nestor Cerveró, diretor da Petrobras que cumpria regime de prisão preventiva em Curitiba, gravou um diálogo com o próprio Delcídio, registrando palavras e promessas comprometedoras. A conversa, que incluiu afirmações levianas sobre os ministros do STF, acabou servindo de principal prova para o pedido de prisão, autorizada pelo Supremo, ainda que não fosse um caso de flagrante, como exige a lei. Mesmo com essa experiência fresca na memória, as gravações de Sérgio Machado não receberam a mesma atenção.
Os diálogos não foram suplementados por gravações oficiais, controladas, de valor jurídico fora de dúvidas, e que poderiam detalhar e esclarecer os motivos daquela conspiração — como se fez com Delcídio, num processo iniciado por uma prisão preventiva de três meses, que incluiu um prolongado isolamento numa cela da Polícia Federal em Brasília.
Uma boa síntese do comportamento sobre Jucá-Sarney-Renan encontra-se num despacho de 14 de junho, quarenta e cinco dias antes da votação final contra Dilma. Ali, Teori Zavaski responde a vários pedidos enviados por Rodrigo Janot para prosseguir na apuração. Logo de cara, na página 4, Teori faz aquela informação definitiva sobre as gravações. Diz que “as conversas gravadas demonstram que eram fundados todos os temores de que uma parcela relevante da classe política estivesse construindo um amplo acordo não só para paralisar a Lava Jato mas também para impedir outras iniciativas do sistema de justiça criminal.” Fala de iniciativas de caráter “tático”, que seriam referentes a Sérgio Machado e seus interlocutores, que envolveriam a atuação de advogados — são citados Eduardo Ferrão e Cesar Asfor Rocha, este ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça — com “acesso privilegiado” ou mesmo “verdadeira ascendência” junto ao próprio Teori para obter favores na “moeda de troca da prestação jurisdicional.”
O despacho também se refere a uma “vertente estratégica”, de vulto maior, “num dos mais graves atentados institucionais” de que se tem notícia. Sua finalidade seria “cortar asas” da Justiça e do Ministério Público.
No mesmo despacho, contudo, Zavaski não faz referência a qualquer possível pedido de autorização para grampear os telefones das autoridades sob suspeita — providência banal em situações desse tipo –, lacuna que permite interpretar que a solicitação sequer tenha sido enviada ao STF.
Na página 12, o ministro responde a solicitação para autorizar uma ação de busca e apreensão na residência e nos escritórios dos senadores, numa colheita básica de informações em investigações dessa natureza. A resposta foi negativa. A explicação é que o pedido do Ministério Público se baseava “exclusivamente no conteúdo das conversas gravadas” por Sérgio Machado. Mas não vinha acompanhado de “diligências complementares” que poderiam dar maior fundamentação ao pedido. Conforme Teori, o pedido não se “desincumbiu do ônus de demonstrar a imprescindibilidade da medida.”
Uma leitura distanciada destas afirmações inspira muitas dúvidas e uma grande certeza. Considerando a importância inequívoca dos diálogos gravados em fevereiro e março de 2016, a questão é saber por que a investigação não foi adiante. Faltou empenho por parte do Ministério Público, que poderia ter insistido mais em seus pedidos ao STF?
Havia má vontade de Teori Zavaski, o ministro que só autorizou uma investigação sobre outro personagem notório, o presidente da Câmara Eduardo Cunha, depois que este encaminhou o pedido de impeachment de Dilma?
A constatação obrigatória é que, mais uma vez, comprovou-se o caráter seletivo das investigações sobre corrupção no país — que andam mais rápido, e atingem alvos mais importantes, quando envolvem lideranças ligadas ao Partido dos Trabalhadores, aos governos Lula e Dilma e empresas que participaram de um modelo de desenvolvimento econômico voltado para a construção de um mercado interno de massas.
O saldo está aí, à vista de todos. Se os fatos são graves, por si, o escândalo é ainda mais preocupante quando se recorda que, mesmo depois que a trama se tornou conhecida, nada se fez para combater um dos “mais graves atentados institucionais” de nossa história. O governo Dilma foi substituído por um conjunto de personagens suspeitos, que em poucos meses se tornaram uma fonte permanente de instabilidade e conflito institucional que só poderá ser superado através de eleições diretas, que permitam o retorno a democracia e o respeito a soberania popular.