As instituições brasileiras não estão funcionando, por Fernando Horta
As instituições brasileiras não estão funcionando
por Fernando Horta
Instituições são normas, regramentos, padrões; físicos, imagéticos ou culturais criados pelo homem com objetivo de constranger ou estimular determinadas ações e valores. Isto desde as religiões teocráticas e despóticas da antiga Mesopotâmia, passando pela igreja católica medieval, pelos estatutos das nobrezas europeias, pelo iluminismo do século XVIII chegando até nossa sociedade hoje.
Quando se cria, por exemplo, um ritual para se comemorar o dia da “pátria”, se está incentivando que as pessoas cultuem uma ideia de nação e, ao mesmo tempo, constrangendo aqueles que nisto não acreditam, de forma a que não se manifestem abertamente. Claro que existem os usos perversos das instituições. O casamento, por exemplo, que originalmente incentivava a monogamia heterossexual, a sacralidade do papel de mãe da mulher e a consolidação de uma célula familiar patriarcal, acabou resultando no encarceramento social e cultural da mulher, por anos entendido como único papel socialmente aceito que poderia ser exercido pela mulher.
A reflexão política e social do século XVIII criou a ideia de “república” que, aplicada às instituições, significava que para “estarem funcionando” as instituições deveriam ser igualitárias. Deveriam, também, agir da mesma forma sobre todos os indivíduos, agora chamados de “cidadãos”. O século XX traz a ideia da transparência, da participação democrática e do respeito a um grupo de valores ocidentalmente definidos, chamados “direitos humanos”. Assim, hoje, para dizermos que uma instituição moderna “está funcionando” ela tem que ser republicana, transparente, com participação democrática e respeitando os valores básicos delimitados como direitos de todo ser humano, indiferente a qualquer outra condição.
Claro que existem instituições que não são modernas e recusam-se a enquadrarem-se nesta perspectiva. Existem comportamentos, valores, padrões institucionalizados que são exatamente o oposto do que deveria ser uma “instituição moderna” em funcionamento. O racismo, o machismo e o conservadorismo preconceituoso, por exemplo, são instituições culturais perversas que continuam a existir no nosso mundo. Eles incentivam um tipo de comportamento que é considerado, por uma maioria de pessoas, danoso para a sociedade. É uma luta diária opor-se a estas instituições culturais ou comportamentais, e para isto os estados modernos criaram leis e novas instituições cujo objetivo é vigiar estes comportamentos indesejados. Vigiar e punir.
Aqui está o ponto. No Brasil temos uma série de instituições (muitas vezes sobrepostas) que deveriam constranger comportamentos não republicanos, não transparentes, não democráticos ou que violem os direitos básicos de todo ser humano. Desde a escola, igrejas, polícia, conselhos profissionais, ministério público, poder judiciário e etc. Deveriam se manifestar imediatamente para constranger comportamentos danosos à sociedade. Vemos, entretanto, que no Brasil estas instituições não estão funcionando.
Quando o preconceito nasce dentro de um colégio fica evidente que a equipe diretiva deste colégio não está cumprindo sua função. Quando igrejas incentivam a violência contra outras igrejas ou grupos, aproveitando de seus “fiéis” o poder público republicano deveria imediatamente agir. Quando policiais matam à esmo, agridem, torturam e violam os mais básicos direitos da pessoa humana o poder judiciário deveria ser acionado e coibir estas práticas. Quando conselhos profissionais não punem seus membros que atentam contra os princípios republicanos eles contribuem para a inatividade das instituições. A simples continuidade e reprodução destes comportamentos em nossa sociedade demonstra que nossas instituições não estão funcionando. E estamos vendo não apenas a continuidade destes comportamentos indesejáveis, mas sim o aumento desavergonhado destas práticas.
Não é porque um juiz ganha salário, cumpre horário, despacha e julga que a instituição do judiciário “está funcionando”. Não é porque um policial espanca manifestantes, joga gás de pimenta no rosto de cidadãos e prende ou mata jovens negros na periferia que a polícia, enquanto instituição, “está funcionando”. Não é porque temos um parlamento aberto criando leis que ele “está funcionando”. Funcionar é cumprir a função social ou política original e coibir comportamentos não transparentes, não democráticos, não igualitários ou contra os direitos do cidadão e da pessoa humana. Do contrário é desperdício de dinheiro do Estado. É embuste.
Nos últimos 13 anos, vimos as instituições brasileiras serem mais inclusivas, mais responsivas e independentes. Em níveis de expansão e melhora diferentes sim, talvez não na velocidade que uns gostariam, mas, certamente, com avanços mais rápidos do que outros (conservadores) estavam dispostos a aceitar. Todos os índices mostram esta melhora. Alfabetização, escolaridade, aumento da malha de atendimento da saúde, independência das instituições de fiscalização, inclusão social de grupos antes marginais, alargamento dos direitos e garantias e etc. É certo que não havia equidade destas garantias em todo território nacional. O Brasil escuro, o Brasil profundo, o Brasil lento, nas categorias de Milton Santos, é (e sempre foi) refratário a estas modificações. A luta era, entretanto, avançar e aprofundar tais conquistas.
Em 2016, primeiro o golpe acabou com a democracia, anulando 54 milhões de votos. Em seguida, acabaram com a República criando, com anuência judicial, o cidadão de primeira, de segunda e terceira classes. Para alguns valia a lei da polícia militar, julgando e matando sumariamente. Para outros o judiciário surdo, punitivo, branco, moralista e de classe média enchendo nossas prisões. Outros ainda mereciam não só o acobertamento do judiciário, mas da imprensa e de todas as outras instituições.
É verdade que isto sempre existiu e é característica da nossa sociedade? É. Não é criação de Temer, mas é criação das elites que colocaram e sustentam Temer. A luta não é por “diretas”, por “aposentadoria” ou por “legislação trabalhista”. Apesar de importantes, estes temas são apenas a ponta do iceberg. A luta que se desenrola hoje no Brasil é se queremos ser um país do século XX ou XXI que não transige nem aceita ataques aos valores republicanos e democráticos ou se queremos voltar ao país “deles”: elitista, baseado numa falsa meritocracia, que defende uma ideia de liberdade branca, masculina, heterossexual, urbana e de classe média. Um pais em que as instituições funcionam apenas para alguns poucos e que abandonou qualquer ideia de igualdade e de cidadania. E não tem vergonha disto.