Publicado no ConJur
Após um ano e meio da conhecida “delação do fim do mundo”, as colaborações da empreiteira Odebrecht, que envolveram mais de 70 executivos, tiveram nos últimos dias sucessivos arquivamentos no Supremo Tribunal Federal. Para especialistas ouvidos pela ConJur, as decisões apontam para a fragilidade das delações como único instrumento de prova.
Desde que a operação “lava jato” teve início, em março de 2014, foram abertos 183 inquéritos na corte, dos quais 140 continuam lá. Eles foram abertos com base em 113 delações premiadas e resultaram em 94 ações cautelares, das quais 86 ainda estão em andamento.
Diferentes ministros do STF já se manifestaram pelo arquivamento de processos decorrentes dos acordos da Odebrecht. Críticos aos abusos cometidos pelos investigadores da “lava jato”, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli não estão sozinhos nas decisões. Luís Roberto Barroso, que, ao contrário, enaltece os trabalhos da operação, também já trancou inquérito aberto com base nas delações dos executivos da empreiteira.
Para o criminalista Luiz Flávio Borges D’Urso, ex-presidente da OAB-SP, houve uma proliferação de delações na “lava jato”. Ele advoga para o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, cujos processos foram instruídos principalmente por delações.
“A lei estabelece que a palavra do delator não é prova. Há a necessidade de que tenha mais provas. Muitas vezes, o que resta é apenas a fala do delator, o que não é suficiente para processar. A palavra, sozinha, nada vale. Ela precisa ter elementos para corroborá-la”, explica o advogado. “Como o delator visa um benefício próprio, o grau de desconfiança em relação à palavra é grande, uma vez que seria um caminho muito fácil, bastando acusar alguém.”
Isso não significa que as delações não funcionem. Segundo D’Urso, é inegável que houve abuso nos acordos de delação, tanto por parte do Estado quanto dos acusados. Mas houve delações confirmadas. “A cautela deve ser permanente e não se deve de dar publicidade ou relevância à palavra de delator antes das provas. O grande erro da operação foi dar ampla repercussão às delações que apontaram pessoas como criminosas e ao longo do inquérito tudo se desfez”, afirma.
Na opinião de João Paulo Martinelli, criminalista e professor de Direito Penal do IDP-São Paulo, é necessário regulamentar os acordos. “A lei deixa uma lacuna, o que pode gerar uma insegurança jurídica. As informações são homologadas, mas descartadas. Assim, gera o sentimento se vale a pena fazer. Seria melhor se fosse regulamentado. O próprio MPF publicou diretrizes para os diretrizes e reconhece a regulamentação das delações”, declarou.
Meios de obtenção
Segundo o criminalista João Paulo Boaventura, sócio do escritório Boaventura Turbay, as delações são um meio de obtenção de provas, conforme o Supremo já definiu. “A colaboração premiada é um meio de obtenção de provas e não a prova em si, por isso exige que a fala do colaborador venha acompanhada de provas de corroboração. Se transcorrido prazo razoável – com sucessivas prorrogações – sem que o colaborador tenha comprovado sua narrativa de maneira suficiente para que o Ministério Público formalizasse denúncia, não se pode impor ao investigado o ônus de figurar como objeto de investigação por tempo ilimitado”, disse.
Já o advogado Alexandre Ribeiro Filho, criminalista do Vilardi Advogados, alerta que os arquivamentos estão pautados no artigo 18 do Código de Processo Penal, e que podem voltar a vir à tona. O dispositivo diz que inquéritos podem ser reabertos se surgirem novas provas ou notícias de fato.
“Os ministros têm arquivado com respaldo do CPP. Assim, se surgirem novos fatos, os processos serão desarquivados”, afirma. “A delações são importantes porque deram início a várias investigações, mas precisam ser corroboradas por outros elementos de prova. Nesses casos arquivados não têm se chegado a corroboração. Em respeito ao investigado, que não pode ser investigado para sempre, o STF vem encerrando as investigações”, analisa.
Para Daniel Bialski, do Bialski Advogados, a delação por si não vale nada. Segundo ele, responder a um processo penal já é um constrangimento e por isso são necessários indícios mínimos para que denúncias sejam aceitas. “O Supremo tem visto que a mera alegação sem provas não pode movimentar processos e não pode gerar investigações mais aprofundadas.”
Para Bialski, o grande problema foi a forma como as coisas foram apresentadas. “Qualquer pessoa queria fazer delação por saber que era uma saída do problema. As delações podem ser movidas por vingança e até para dar credibilidade ao depoimento. Foram poucos os casos em que as delações foram verdadeiras”, afirma.
Calibragem do modelo
Para Victor Rufino, especialista no assunto, ex-procurador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e advogado do Mudrovitsch Advogados, o debate está amadurecido. Ele entende que, há alguns anos, o que se dizia era que não era interessante “fazer acordos com criminosos”. Hoje, para ele, a discussão se dá em torno das formas para melhorar o instrumento.
“Só a delação é insuficiente. Ela serve para deflagrar uma operação, dar mais eficiência à persecução penal. É importante, mas instrumental”, diz. Observar o arquivamento de alguns inquéritos não é, para Rufino, o mesmo que a falência do modelo. “Fica a questão se a acusação está se desencumbindo do ônus da prova ou se advogados e juízes é que estão sendo muito exigentes”, pondera.
Victor Rufino entende que as delações precisam ser vistas com mais sobriedade. “Sem documentação que a acompanhe, ela tem valor probatório, mas mais baixo”, avaliou. “Tem-se que colocar maior ceticismo delas, tanto do ponto de vista jurídico como do discurso político”, disse. Isso porque, de acordo com ele, criou-se um entendimento de quem é delatado é culpado.
“Vai haver uma calibragem”, analisa o ex-procurador do Cade. “A tendência é que esses casos de absolvição sejam internalizados pelos acusadores e que a cada nova rodada o modelo seja aperfeiçoado, para que as pessoas tenham padrão maior em relação aos relatos”, acredita.
Casos arquivados
Para arquivar os inquéritos, os ministros do Supremo têm observado que as investigações demoram sem justificativa e não apresentam informações novas ao que foi revelado pelos executivos. Em alguns casos, a Procuradoria-Geral da República chegou a pedir quatro prorrogações de prazo sem fazer diligências novas nesse período.
No dia 3 de julho, o ministro Toffoli, para arquivar investigações contra o deputado Daniel Vilela (MDB) e seu pai, Maguito Vilela, disse que a PGR não apontou sequer indícios mínimos de autoria e materialidade nos 15 meses em que o inquérito ficou aberto.
A prorrogação sucessiva de um inquérito sem provas também motivou a decisão de Toffoli pelo encerramento da investigação contra o deputado federal Bruno Araújo (PSDB-PE).
Instaurado em abril de 2017, o inquérito que apontava que o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) foi favorecido com caixa dois, foi arquivado pelo ministro Barroso. Na decisão, o ministro apontou que se esgotou o prazo para a conclusão das investigações. A morosidade obrigaria o investigado a suportar, indefinidamente, o ônus de figurar como objeto de investigação.
Com base no mesmo fundamento, Alexandre de Moraes arquivou os inquéritos contra os senadores Eduardo Braga (MDB-AM ) e Omar Aziz (PSD-AM).
No fim de junho deste ano, Gilmar Mendes determinou o arquivamento de inquéritos contra os senadores Aécio Neves (PSDB-MG) e Jorge Viana (PT-AC), e do irmão dele, o governador Tião Viana. Segundo ele, a PGR ficou por mais de dois meses com o caso para análise e devolveu sem manifestação conclusiva.