Bolsonaro, Mourão e Guedes e o governo que não pode dar certo, por Fernando Horta
Bolsonaro, Mourão e Guedes e o governo que não pode dar certo
por Fernando Horta
São três projetos de governo distintos. Três ideias sobre o que fazer, diferentes, divergentes e que têm apenas duas noções em comum: autoritarismo e anticomunismo.
Em nada mais eles concordam e, como o diálogo e a busca do consenso não são características pessoais de nenhum deles, este governo não tem chance alguma de dar certo.
Durante a campanha eleitoral já era possível ver um ruído bastante forte entre Bolsonaro e Mourão. Por diversas vezes, as falas e opiniões dos dois se chocaram, com o ex-capitão mandando o ex-general calar-se. Não entro na questão da hierarquia aqui, porque Bolsonaro é um político expulso do exército, enquanto Mourão é um militar expulso da política. Ambos se forçaram para dentro dos espaços que não os aceitavam, talvez com semelhante autoritarismo. Ocorre que, depois da eleição, as diferenças aumentaram ao invés de diminuírem e, dada a confiança que ambos estão por deterem o poder institucional, as falas divergentes se multiplicam.
Bolsonaro é um político por natureza. Foi expulso do exército exatamente por ser político e não respeitar hierarquias. Bolsonaro só tinha seu próprio projeto de poder para lhe guiar, e este não reconhecia qualquer limite. Isto foi percebido pelos superiores de Bolsonaro, e ele foi denunciado. Bolsonaro se aproximou dos evangélicos, aumentou a violência da retórica contra a esquerda e grupos identitários, fazendo todos os passos em direção ao fascismo, exatamente porque assim ele pensa, mas também sabendo que se aproximava de forças que lhe poderiam ser úteis. O apoio da bancada evangélica, da bancada da bala e da ignorância social ressentida é algo que foi construído por Bolsonaro nos últimos dois anos. Não é “pensado”, no sentido de planejamento, mas é “vivido” no sentido que Bolsonaro é um “animal politico”. Venal, pérfido, mas é.
Sua visão de Brasil é fragmentada pela sua ignorância. Ele, a bem da verdade, não conhece absolutamente nada do país que vai governar e confia nos “auxiliares” para lhe dizerem o que fazer. Deixou isto muito claro em toda a campanha. Seu objetivo é unicamente “acabar com o comunismo” no Brasil. Nada mais ele diz e nada mais lhe foi pedido dizer para ser presidente. E o que não foi dito vai pesar muito a partir de agora.
Mourão é um ex-general formado pela velha e carcomida intelectualidade militar. Carrega ressentimento e um anti-intelectualismo como práticas de análise. Conhece o Brasil pelo olhar militar. Sabe que a Amazônia é um problema geopolítico, que o país tem um déficit sério na sua capacidade de defesa, entende que o Brasil é rico “em recursos”, mas “historicamente” nunca teve capacidade de aproveitar. Os motivos para este gap entre a “vontade de potência” do Brasil e sua realidade, segundo o que o general aprendeu, é sua população. As teorias raciais e preconceituosas do final do século XIX e início do século XX são a base informativa e formativa do exército. O determinismo geográfico diz a ele que o nordestino e o “pardo” têm uma determinada constituição psicológica e social e não se pode querer dele o desprendimento social do “branco e de olhos claros” encontrado em outras partes do Brasil. Exatamente como Euclides da Cunha argumentava, Getúlio Vargas assumia como verdade, e uma imensa parte do Brasil ainda replica.
A visão prática dos militares costuma acreditar que basta querer para que se possa fazer. E isto implica num profundo autoritarismo. Durante o regime de 64, por exemplo, os militares resolveram fazer estradas, pontes, represas e etc. onde bem lhes parecesse necessário. Sempre eram incapazes de compreender a impossibilidade de seus planos, e não raro viram o fracasso como parte dos resultados. Mourão não é diferente. Seu sonho, dito na última entrevista, de um Brasil “forte”, altivo e capaz de ter uma representação melhor das suas capacidades no cenário internacional é uma forma pueril e ignorante de desconhecimento do cenário internacional, das dinâmicas centro-periferia ou do próprio espaço dado ao Brasil pelo capitalismo mundial. Mourão é um adolescente no mundo civil. Um que acha que pode tudo, que sabe tudo, e tem críticas juvenis a qualquer coisa que seja diferente do seu mundo.
Mourão é um militar autoritário clássico, Bolsonaro é um político fascista que descobriu que as instituições não são capazes de lhe conter e, por isto, chegou ao poder. Entre eles há uma enorme diferença. Guedes poderia ser um ponto de encontro entre os dois, mas não é.
Paulo Guedes é um ultra-liberal formado pela tristemente famosa “Escola de Chicago”. Chicago é um dos mais fortes pontos de tensão capitalista nos EUA até a metade do século XX. A região dos grandes lagos nos EUA é o berço da indústria automotiva e isto representa uma história de força dos movimentos proletários, negros e de contra cultura. Para se contrapor a isto, as elites da região inverteram muito capital em formas de controle social. Uma delas foi o conservadorismo do pensamento das universidades. Não é sem uma razão que a Universidade de Chicago se tornou conservadora em praticamente todas as áreas. Os males que estes estudantes de Chicago fizeram à América Latina são por demais conhecidos. Guedes é fruto tardio deste projeto, e tem laços próximos com a intelectualidade que transformou o Chile num país autoritário de ultra-liberalismo baseado na extração mineral e numa desigualdade social monumental.
Para Guedes, o “mercado” é a racionalidade que deve coordenar as sociedades, custe o que custar (frise-se). O ultra-liberalismo de Guedes precisa do autoritarismo de Mourão e do Conservadorismo atávico de Bolsonaro. O mercado não convence a uma imensa quantidade de pessoas que eles serão sempre pobres e devem trabalhar muito para que um grupo pequeno de pessoas possa gozar do “capitalismo” sem uma boa dose de pancada e controle da mídia.
O que Mourão e Bolsonaro não sabem (e vão aprender) é que seus dois projetos são diferentes do de Guedes. E, em verdade, o ultra-liberalismo de Guedes é um problema para o populismo conservador fascista e mesmo para um autoritarismo militar clássico. A violência econômica que o ultra-liberalismo vai provocar na sociedade terá que ser contida pela força dos porretes. O problema é que todos os três projetos dependem de pancada e controle sobre a sociedade, e vai faltar lombo de trabalhador para tanta violência. Como a sociedade suporta apenas um determinado nível de violência, o governo Bolsonaro logo vai ter que escolher, se espanca pessoas para fazer reformas “estruturais” na economia (que aumentarão a desigualdade), se colocarão as tropas na rua para manter o “controle ideológico” sobre o pensamento da sociedade ou se vão promover a violência contra os que se opuserem ao projeto de “Brasil grande”, que prevê uma mudança da institucionalidade e da geografia do país, aos moldes dos militares dos anos 70.
Bolsonaro, Mourão e Guedes aprenderão que falta quem dê tanta pancada, assim como vai faltar apoio social a todos estes projetos. O ponto de sinergia mútua entre os três terminou com a eleição. O que fazer com o Brasil é uma pergunta que os divide, e não aproxima. E, dada a falta de capacidade de diálogo, as posições hierárquicas culturais e a já mencionada disposição de Mourão em fazer um “governo conjunto”, penso que Guedes é o primeiro a ser rifado.
O projeto defendido por Guedes, ainda que fosse colocado em prática por uma pessoa mais capacitada que ele, não tem chance alguma de dar qualquer resultado positivo. As experiências históricas estão aí, de Pinochet a Macri. Os resultados são sempre os mesmos, empobrecimento vertiginoso da maioria da sociedade, enriquecimento de um pequeno grupo e aumento da violência institucional que leva a uma estagnação econômica travando todo o sistema. Colocado em prática por alguém que não sabe que o orçamento é votado no ano anterior e que desconhece as diferenças entre variáveis de fluxo e de estoque (como a dívida) … será um desastre.
O descontentamento econômico provocado pela ânsia de Guedes em mudar rapidamente tudo (já que sabe que terá um curto período de atuação) se somará com o descontentamento dos que votaram em Bolsonaro porque viram nele um “bastião contra a corrupção”. Mourão já precisou intervir para podar o político Bolsonaro de colocar o “seu grupo de corruptos” em ministérios e cargos. E a disputa interna entre o Bolsonaro político e Mourão militar não encontrará um denominador comum sem constranger seus apoiadores. Um ex-general pudico e nacionalista não saberá o que fazer ao lado de um ator pornô gay, um político corrupto confesso em caixa dois e uma trupe de pastores milionários, vários envolvidos em escândalos de corrupção ou sexuais. Enquanto todos estes últimos aceitam a presença de um amante da tortura e saudosista dos porões do DOPS e do DOI-CODI, o ex-general se sabe diminuído, frente aos seus pares, a cada foto e a cada aperto de mão.
Tanto do ponto de vista estratégico quanto das micro-relações de poder, o governo Bolsonaro não tem a mínima chance de dar certo. Há um ditado antigo que diz que não se pode servir a dois mestres ao mesmo tempo. O governo eleito não poderá servir ao populismo conservador fascista, ao “deus mercado” e ao nacionalismo autoritário ao mesmo tempo. Suas pautas comuns terminam no “uso da força” e na “extinção da esquerda”. Ocorre que um governo precisa apontar ações afirmativas e, para elas, não há nenhum consenso.
Daí pode-se dizer que viveremos uma espiral de autoritarismo, redução de liberdades, redução de direitos e empobrecimento da sociedade. E, para aplacar os ânimos, teremos bastante borracha. Dado que as redes sociais aumentaram exponencialmente a capacidade de comunicação, não é mais possível manter um regime assim por muito tempo. E os acordos de silêncio com a mídia já não resolvem o problema. Estamos dispostos a aceitar um nível de violência institucional nunca antes exercido na América Latina? Acho que não estamos, e os anos que se seguem serão – quer queiram, quer não, Bolsonaro e Mourão – vermelhos.