Como os neopentecostais conquistaram o Brasil, por Luis Nassif
Em 1984, dos 12,9 milhões de simpatizantes do pentecostalismo fora dos EUA, 9,9 milhões estavam na América Latina, e mais de 6 milhões no Brasil
Um relatório de 2014 sobre o movimento pentecostal na América Latina, da consultoria espanhola Lorentz & Cuenca, traz boas luzes sobre o avanço do movimento pentecostal na América Latina.
O relatório é de 2014, período em que a candidatura Marina Silva, nas eleições presidenciais, expôs pela primeira vez a relevância do voto pentecostal.
O relatório se concentra especialmente em países como Guatemala, Honduras, Brasil e Chile, nos quais entre um terço e 40% da população trocou o catolicismo por algumas das igrejas evangélicas.
A procedência dos protestantes
O pentecostalismo é um amplo movimento religioso, com grande variedade de grupos com formação e práticas distintas.
Historicamente, o protestantismo era composto pelas chamadas igrejas missionárias, de duas procedências.
Da Europa vieram os luteranos (alemães), presbiterianos (escoceses), anglicanos (ingleses), valdenses (franceses e italianos), reformadores (holandeses e suíços), batistas (galeses), menonitas (holandeses e suíços).
Dos Estados Unidos vieram as igrejas luteranas, episcopais (anglicanas de origem americana), presbiterianas, quakers, metodistas e batistas.
O pentecostalismo nasceu em 1904 nos Estados Unidos, como uma reforma religiosa dentro do evangelismo.
A primeira onda evangélica é de 1910, com as Igrejas Assembleia de Deus, Igreja da Profecia e a do Príncipe da Paz na Guatemala.
A segunda onda é dos anos 50, com o Evangelho Quadrangular – Cruzada Nacional de Evangelização (1953), Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo” (1956), Igreja da Nova Vida (1960), Igreja Pentecostal “Deus é Amor” (1961), Casa da Bênção (1964), Metodista Wesleyana (1967).
Foi uma rápida penetração. Em 1984, dos 12,9 milhões de simpatizantes do pentecostalismo fora dos EUA, 9,9 milhões estavam na América Latina, e mais de 6 milhões no Brasil, especialmente atuando junto aos setores populares urbanos.
A onda neopentecostal
O neopentecostalismo nasceu dos pentecostais e dos grupos renovadores carismáticos dos anos 50 e 60. Começa a crescer a partir dos anos 70.
Sua principal característica são as mudanças na doutrina, especialmente em relação ao papel do Espírito Santo, passando a dar ênfase ao fervor emocional, apelando para as emoções.
Os principais representantes são as igrejas Salão da Fé (1975), a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e a Igreja Internacional da Graça (1980).
Enquanto o pentecostalismo tinha como foco os setores populares (emigrantes internos, desempregados e setores populares), o neopentecostalismo procurou os setores médios e altos da sociedade, universitários, profissionais liberais e empresários.
Cresceram apoiados por investimento nos meios de comunicação de massa (rádio, TV e Internet), mas também em uma ampla infraestrutura com colégios, livrarias, cafeterias e estúdio de gravação. E administrando as igrejas com um estilo empresarial de produção e distribuição de bens religiosos.
A influência americana
O estudo lembra o Relatório Rockefeller de 1969, que sugeria o uso das igrejas como estratégia dos EUA e da CIA para deter o auge da Teologia da Libertação. O Relatório Rockefeller se tornou uma lenda, mas é enquadrado pelo trabalho na relação das teorias conspiratórias.
Mas não ignora a profunda influência americana nas primeiras investidas neopentecostais.
As novas missões protestantes, especialmente as vindas dos Estados Unidos, traziam novos rituais, baseados na conversão e no êxtase religioso. Gradativamente foram se adaptando às condições latino-americanas, em um processo de aculturamento originalíssimo.
Mas, para entender esse processo, há que se passar antes pelas mudanças socioeconômicas ocorridas, que mudaram a face do continente.
Mudanças socioeconômicas
Ao contrário do resto do mundo, a modernização da América Latina não levou a uma secularização. Aumentou o número de agnósticos e de não crentes. E houve também um retorno ao sagrado, uma busca das raízes para enfrentar a insegurança ante o novo.
Enfim, um conjunto de novas circunstâncias, uma diversidade ampla, gerando insegurança e demanda por apoio. É nesse quadro que o modelo de gestão passa a ter papel fundamental.
De um lado, a Igreja Católica, pesada, dividida entre tradicionalistas e progressistas, presa ao conjunto de símbolos da idade média. De outro, os pentecostais com modelos de gestão modernos, descentralizados e com foco no cliente.
A religiosidade latino-americana
Para se adaptar aos novos tempos, já nos anos 70, as igrejas latino-americanos passaram a desenvolver um estilo próprio, libertando-se da influência norte-americana, com suas normas adaptadas ao liberalismo do país. Cria-se um pentecostalismo latino, uma miscelânea religiosa emulando várias características do catolicismo tradicional.
Enquanto o protestantismo norte-americano se adaptava ao liberalismo do país, as igrejas latino-americanas recriaram as relações patriarcais das fazendas, dos colonos colocados sob o guarda-chuva protetor dos coronéis e da fé. Era o patriarcado colonial adaptado às condições das megalópoles contemporâneas.
Reside aí o centro das críticas dos cristãos norte-americanas ao hibridismo das religiões evangélicas na América Latina. Elas se tornaram parte genuína da sociedade latino-americana, justamente por emular características históricas do continente.
Mencionado no trabalho, Jean-Pierre Bastian ressalta que
“poderíamos dizer que nesta ‘hibridez’ se está lidando não só com a adaptação ao mercado latino-americano, mas também com a criação de produtos originais, híbridos, que os pentecostalismos ofereceram em toda a região. Isso se nota em particular a partir da produção musical dos hinos, que de fato até os anos 70 era de origem anglo-saxão, e que a partir de então se transformou em cantos diretamente inspirados pelas tradições musicais populares endógenas. Hoje em dia, vemos se desenvolver o que estes movimentos chamam de “Ministérios de louvor”, que adotam a música local, em particular o samba ou outros gêneros tropicais como a sal-sa etc. Inclusive se chamou a este tipo de expressão musical com algum tipo de anglicismo como “salsa-gospel” ou “samba-gospel”.
No Brasil, as igrejas evangélicas mais relevante são a Assembleia de Deus, com 12 milhões de fieis, e liderada pelo pastor Manoel Ferreira; a Igreja da Graça, liderada por Romildo Ribeiro Soares; a Igreja Universal do Reino de Deus, dirigida pelo Bispo Edir Macedo, com 1,8 milhão de seguidores ; a Igreja Mundial do Poder de Deus, de Valdomiro Santiago, com 400 mil seguidores.
Vamos destrinchar um pouco o modelo de gestão adotado.
O modelo de gestão
Em cada Igreja, há uma liderança carismática como fator de coesão. Na Guatemala, é Cash Luna; em Honduras, René Peñalba, Tomás Barahona e Misael Argeñal em Honduras.
O que sustenta a expansão é a estrutura horizontal de bispos associados, através de igrejas locais e grupos independentes ou semiautônomos, nos quais a figura-chave é o pastor. Ele é o velho coronel da guarda nacional, incumbida de abrir o guarda-chuva onde os fiéis vão se abrigar e receber segurança.
No interior de cada Igreja, a estrutura é fortemente piramidal, com suficiente capacidade, flexibilidade e autonomia para se adaptar às circunstâncias de cada região ou país.
Essa flexibilidade foi essencial para dar respostas rápidas às demandas provocadas por crises econômicas, terremotos sociais, urbanização acelerada.
Nos anos 80, depois dos terremotos de Manágua, em 1974, e da Guatemala, em 1976, os evangélicos criaram redes de apoio.
No Brasil, os fatores que levaram à expansão das igrejas foram:
- a crise econômica do final dos anos 70 e de toda a década dos 80;
- o explosivo aumento da urbanização com a multiplicação das áreas marginais (favelas) onde existe tradicionalmente pouca presença do Estado e da Igreja Católica, e onde a insegurança física (roubos, assaltos, assédio das quadrilhas) e a econômica (emprego informal e poucas expectativas de trabalho) é uma constante.
Para compensar a ausência de estado, passaram a oferecer aos fiéis apoio religioso, mas também escolas, consultórios legais, postos de saúde. Desenvolveram estratégias para combate ao alcoolismo e às drogas. Aproximaram-se das mulheres com sua defesa das famílias estáveis e combate à violência doméstica. Montaram sistemas de apoio nos presídios. Por aí, sua influência se estendeu para as organizações criminosas que, nas favelas, se tornaram peças essenciais na guerra contra as religiões afro.
Ao mesmo tempo, os neopentecostais investiram sobre a classe média alta, com a nova teologia da prosperidade, e encontros de oração em hotéis de luxo. Justificaram, pela fé, a posição dos privilegiados. Trocaram o remorso da riqueza pela predestinação divina.
O uso modernos dos símbolos
Um grande publicitário brasileiro, Roberto Dualibi, costumava associar o catolicismo ao uso de técnicas de marketing, a cruz, o sino, as imagens, a confissão. A renovação foi ínfima.
Já o neopentecostalismo apela para a parte irracional, sentimental e experimental dos indivíduos. Seu marketing se baseia em curas físicas, na promessa de prosperidade econômica, na utilização da música nas cerimônias, na ênfase na oralidade e nas práticas populares tradicionais. Segundo o trabalho, utiliza com desenvoltura as línguas autóctones (daí seu sucesso na penetração entre os setores rurais indígenas), assim como a linguagem comum para se aproximar de seus seguidores.
Uma de suas marcas é a construção de grandes tempos. Em 2013, Cdash Luna inaugurou a Igreja Casa de Deus, com capacidade para 11 mil fiéis. Mas também investem em escolas, colégios e universidades.
Sua estratégia consiste em recriar espaços de refúgio comunitário, em contraposição à crise da familia tradicional. Daí se entende seu conservadorismo moral.
Segundo o sociólogo guatemalteco e pastor protestante Vitalino Similox, mencionado no trabalho:
“as igrejas pentecostais se transformaram em empresas que desenvolvem estratégias de comercialização e de distribuição multilateral de bens simbólicos, religiosos. Sua hibridação se traduz na justaposição de diferentes níveis de empréstimos, que incluem o conteúdo das crenças, as formas de transmissão e comunicação, os recursos a mediações tanto arcaicas como modernas”.
Os evangélicos e a política
Há muita heterogeneidade entre os evangélicos, mas com predominância dos setores mais conservadores, especialmente em temas morais. E um ativismo político cada vez mais amplo.
As primeiras incursões foram na Colômbia, durante a Assembleia Constituinte dos anos 90.
Seu partido, a Renovação Absoluta (Mira) recebeu 327 mil votos nas eleições para o Senado de 2014. E 412 mil para a Câmara, permitindo eleger três deputados.
No Chile, foram eleitos 200 candidatos evangélicos entre prefeitos e vereadores, principalmente nas regiões indígenas doBiobío e La Araucanía, em cidades como Lota, Curanilahue, Arauco, Lebu e Los Álamos. Entre eles há militantes da Democracia Cristã (DC), Renovação Nacional (RN), União Democrata Independente (UDI), Partido Pela Democracia (PPD), Partido Radical Social Democrata (PRSD), Partido Socialista (PS) e Partido Regionalista Inde-pendente (PRI).
No Brasil, os evangélicos estão distribuídos por 16 legendas políticas, e em três partidos próprios: o Partido Republicano de Brasil (PRB), o Partido Social Cristão (PSC) e o Partido da República (PR).
No Peru, o partido mais forte é o Restauração Nacional (RN) liderado pelo pastor Humberto Lay Sun. Em 1990, Alberto Fujimori foi apoiado pelos evangélicos, que forneceram um pastor como segundo vice-presidente.
A primeira incursão política foi com a Frente Parlamentar Evangélica, de 2003.
Logo depois, a bancada foi atingida pelo escândalo da Máfia dos Sanguessugas, com o desvio de emendas para o bolso década parlamentares.
Foram envolvidos 23 integrantes da bancada, dez da Igreja Universal do Reino de Deus e nove da Assembleia de Deus.
O escândalo reduziu a participação evangélica nas eleições de 2006, mas se recuperou nas eleições de 2010.
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