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Privatização da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro) põe em xeque abastecimento de água para população carente. Especialistas alertam que, na Europa, tendência tem sido de reestatizar saneamento.

Rio

O processo de venda da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro) já virou uma saga de conflitos no Rio de Janeiro. Quem passa diariamente pelo Centro da cidade já criou uma segunda rota para evitar os confrontos entre manifestantes e policiais em frente à Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj). Os protestos são contra a venda da maior empresa de abastecimento de água do estado, um serviço essencial para a população do Rio. A privatização, já aprovada em plenário, vai de encontro ao processo de reestatização das empresas de saneamento básico no Brasil e no mundo, e deixa dúvidas sobre sua real motivação.

“Em primeiro lugar, temos que pensar no seguinte: em 2010, a ONU [Assembleia Geral das Nações Unidas] declarou a água limpa e segura e o saneamento um direito humano essencial. E garantir direitos essenciais é uma função do estado, é um serviço de natureza publica”, destacou o pesquisador Tatsuo Shubo, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

O pesquisador levanta dados numéricos da empresa e do estado. A Secretaria de Fazenda do Governo do Estado demonstra que em 2015 o saldo dos investimentos das Sociedades não integrantes do orçamento do Estado aumentou em R$ 807.610 mil, o que representa uma variação nominal positiva de 14,87% em relação ao ano anterior. Tal fato deve-se, principalmente, ao resultado da equivalência patrimonial obtido sobre o patrimônio da Cedae, positivo em R$ 705.603 mi.

A companhia abastece 64 municípios do Rio e, além disso, o vice-presidente da Associação dos Empregados de Nível Universitário da Cedae (ASEAC), Emy Guimarães de Lemos, lembra que o patrimônio líquido da empresa passou de R$ 5,5 bilhões durante a crise hídrica e que o último balanço divulgado demonstra que a companhia segue sendo superavitária, o que, por si só, já invalida os argumentos do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB), que justifica a privatização da Cedae como medida para diminuir o impacto da crise do estado.

“O que chama atenção para essa questão da venda é a falta de clareza no processo. A privatização de uma empresa que só de arrecadação tem mais de cinco bilhões por ano. É totalmente incoerente”, disse Tatsuo, para quem toda a estrutura da Cedae, ou a maior parte dela, é de titularidade de municípios, ou seja, para ele “o governo do estado, através de uma pressão do governo federal, está vendendo uma coisa que não é dele”.  

Servidores protestam na Alerj contra privatização da Cedae
Servidores protestam na Alerj contra privatização da Cedae

Debate

Paulo Carneiro, pesquisador da Coppe-UFRJ, ressalta para a questão de a privatização estar ocorrendo sem que seja debatida com a sociedade. O projeto de lei 2.345/17, que autoriza o uso das ações da Cedae para viabilizar um empréstimo de R$ 3,5 bilhões da União, foi aprovado em votação na Alerj na última segunda-feira (20). Foram 41 votos a favor e 28 contra. Para a aprovação, era necessária a maioria simples dos 70 deputados.

Inicialmente, a previsão era de que os debates sobre o projeto tomariam toda a semana, mas as 211 emendas apresentadas pelos parlamentares foram rejeitadas pelos deputados da base do governo em uma reunião antes do plenário, e a proposta inicial acabou sendo votada e aprovada já na segunda-feira (20).

“A decisão da privatização foi tomada como um cheque em branco. Dadas as características desse tipo de serviço, o que se recomenda é que atitudes drásticas sejam precedidas por ampla e publica discussão. Está previsto na lei de saneamento, porém nada disso foi feito, sob o argumento de crise fiscal”, disse Paulo.

O inciso IV, do artigo 3º da Lei de Saneamento (LEI Nº 11.445) diz que “para efeitos desta lei, considera-se: o controle social”, ou seja, “conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico”.

O presidente do Sintsama-RJ, sindicato dos trabalhadores nas empresas de saneamento básico e meio ambiente do Rio de Janeiro e regiões, Humberto Lemos, afirmou que a categoria já entrou com ação no Supremo Tribunal de Justiça (STF) e com uma proposta de plebiscito na Alerj. O projeto, segundo ele, está na mesa do presidente da Assembleia, e é assinado por oito lideranças partidárias que corresponde a 29 deputados.

Mais de 500 homens da Força Nacional de Segurança, Polícia Militar e Choque reforçavam o policiamento no entorno da Alerj. A Assembleia está cercada desde novembro de 2016, quando começou a ser votado o pacote de medidas e de cortes de gastos do governo fluminense.

“Estamos falando de um direito do povo, do cidadão. A população tem que se inserir nesse debate. A questão da Cedae é da saúde pública, ninguém vive sem água. Nem entrar na galeria [da Alerj] foi permitido. Não teve um debate democrático. Nós queremos fazer o debate com o povo”, enfatizou Humberto, que também afirmou que a paralisação dos servidores terminou nesta quinta-feira (23), após quatro dias, seguindo o regulamento de greve.

Tarifa Social

Funcionários da Cedae fazem manifestação em frente a empresa
Funcionários da Cedae fazem manifestação em frente a empresa

Outra crítica à privatização é com relação à tarifa social. A Cedae é a terceira maior empresa de saneamento básico do Brasil, e a ETA Guandu é a maior estação de tratamento de água do mundo em produção contínua. Entretanto, só o município do Rio corresponde a 87% da receita da Cedae. Além disso, a tarifa social atende a 1,2 milhões de pessoas no estado. Isso significa que uma população de baixa renda paga um valor mais baixo do que outros usuários.

“A primeira coisa negativa é, no mínimo, dobrar a conta de água, porque municípios deficitários não terão investimento. A empresa privada visa o lucro. Eles querem o filé mignon, não querem o osso. Eles não são superavitários como a capital, não têm retorno para a empresa privada”, alertou Humberto.

“Diante de todo esse contexto, como é que eu vou garantir para a população de baixa renda que ela tenha uma tarifa social? Quando você faz esse tipo de movimento, você coloca em choque o lucro contra o direito humano e o dever do estado. Como você equaciona isso? Em um futuro próximo, eu coloco em xeque o abastecimento de água para população de baixa renda”, concordou o pesquisador da Fiocruz.

Tendências mundiais

O representante da ASEAC afirma, ainda, que o governo do Rio faz um movimento contrário a de outras cidades do mundo. Segundo ele, cidades como Paris, Barcelona, Buenos Aires, Sevilha, Nápoles, Atlanta e Berlim estão retomando o controle sobre o serviço devido às altas taxas cobradas pela iniciativa privada e a piora do serviço prestado.

“No mundo inteiro, mais de 235 cidades, em 37 países nos últimos 15 anos, retornaram ao controle público beneficiando 100 milhões de pessoas, pois além do operador privado ter que repassar aos acionistas lucro, a prestação de serviço teve queda de qualidade. Vale lembrar que a Cedae em 2016, além de bancar o término das obras Olímpicas com recursos próprios, uma vez que o Estado faltou com tais recursos, ainda conseguiu pagar ao seu acionista majoritário, que é o Estado, mais de R$ 300 milhões. Vender uma companhia que gera lucro ao Estado é, no mínimo, burrice. Ou então é ação deliberada de má-fé, que prejudica todos os cidadãos do Rio de Janeiro”, afirma Lemos.

O pesquisador da Coppe, Paulo Carneiro, faz coro a Lemos.

“Existe, hoje, na Europa na América Latina, um movimento reestatização do saneamento. Há uma volta, inclusive por insatisfações aos modelos adotados, de controle do poder público. Essas experiências internacionais devem servir, no mínimo, de referência para a gente tomar mais cuidado e não adotar essa onda de que o setor público é insuficiente, e o setor privado é que é a garantia de qualidade de serviço”, acrescentou.

Ele afirma ainda que as críticas à venda não excluem a necessidade de críticas à empresa enquanto pública.

“Não é que eu ache que o modelo da Cedae pública não mereça análise nem críticas. Pelo contrario, é necessário fazer uma leitura crítica do que não funcionou, para que então pudéssemos, inclusive, transformar a Cedae pública como ela nunca foi efetivamente. Seria muito bom se os objetivos fossem atingidos: a Baía de Guanabara despoluída e o saneamento básico universalizado. Por outro lado, achar que trocar o que temos por empresas privadas vai resolver o problema é um grande engano. Com esse processo de privatização, temos mais incertezas do que certezas”, finalizou.

* do projeto de estágio do JB

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