Análise do futuro acerto de contas com o poder Judiciário, por Luis Nassif; Alguns membros do Judiciário "se acham portadores exclusivos da honestidade e da decência, e por isso credenciados a usufruir de privilégios e a fustigar os outros poderes" e o povo, por Tereza Cruvinel
A crise do presidencialismo de coalizão nasceu de uma semeadura persistente, de escândalos históricos do mundo político, reiterados, repetidos, que jamais foram enfrentados pelas instituições e pelos partidos hegemônicos, nem pelo PSDB, nem pelo PT. A Lava Jato explodiu em cima de um campo minado. Foi apenas uma questão de tempo para tudo vir abaixo.
A próxima crise institucional já tem um personagem à vista: o Poder Judiciário. Nos últimos anos, a arrogância, o corporativismo, o protagonismo político, a falta de sensibilidade das principais lideranças gerou bolhas de desconfiança, que explodirão assim que Executivo e Legislativo se livrarem da organização criminosa que os controla atualmente e recuperarem um mínimo de legitimidade.
Recentemente, um artigo demolidor do jurista Conrado Hubner, contra o STF, conseguiu a unanimidade, tanto entre defensores quanto críticos da Lava Jato, comprovando o grau de desmoralização da mais alta Corte.
Peça 1 – o Supremo Tribunal Federal
Há tempos o STF perdeu completamente o sentido de colegiado. São onze Ministros, cada um por si, vários deles valendo-se de todas as espertezas processuais para impor a sua opinião, com o uso de recursos execráveis, como o pedido de vista a perder de vista, ou críticas diretas aos colegas com os quais não concordam.
Ontem, a patética Ministra Carmen Lúcia, em sua performance mensal ao Jornal Nacional, bradou:
“É inaceitável agredir a Justiça. Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial. Pode-se procurar reformar a decisão judicial pelos meios legais e nos juízos competentes. O que é inadmissível e inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la. Justiça individual, fora do direito, não é justiça, senão vingança ou ato de força pessoal”.
A quem ela se referia, senão aos seus colegas de Supremo, que investem contra os próprios colegas quando perdem uma votação.
Um dos pontos maiores de abuso é justamente o poder arbitrário dos Ministros, de paralisar uma votação com um simples pedido de vista ou engavetando o caso.
Dentre todos os escândalos de pedidos de vista e de esconder processos, nenhum foi mais maléfico para o país que o da Ministra Carmen Lúcia ao esconder, desde 21 de abril de 2013, a ADIN 4234 (http://migre.me/vkVNY), que trata a questão da patente pipeline.
Pipeline é uma brecha que Fernando Henrique Cardoso deixou na Lei de Patentes, permitindo aos laboratórios farmacêuticos repatentear medicamentos cuja patente já havia vencido.
A ADIN foi proposta pela Federação Nacional dos Farmacêuticos, em cima das decisões da Rodada Uruguai da OMC (Organização Mundial do Comércio), que permitiam corrigir esse monstrengo legal. E sua aprovação baratearia substancialmente as compras de remédios pelo SUS, beneficiando toda a população.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal entrou como amicus curiae. Nada demoveu Carmen Lúcia, que continua segurando até hoje a ADIN, beneficiando exclusivamente grandes laboratórios multinacionais, em detrimento da população e do orçamento público. E jamais veio a público explicar sua decisão. Só há uma explicação para essa atitude dela, e nem ouso pensar qual seja.
Peça 2 – os clãs do Judiciário
Os problemas do Judiciário se esparramam pelos demais tribunais.
Apesar do sistema de concursos e de promoções, o Judiciário é o poder que mais está contaminado pelos “clãs familiares”. O casal Marcelo Bretas apenas expôs uma ponta do problema, ao exigir dois auxílios-moradia, morando juntos. Casal de juízes ou juiz-promotora e vice-versa são comuns nos Judiciários estaduais e nas varas de trabalho.
Nem se diga do Ministro Luiz Fux e da maneira como transformou sua filha em desembargadora. Ou dos Zveiter no Rio de Janeiro.
Há um nebuloso sistema de filtros de acesso ao Judiciário, onde quem está dentro puxa quem está fora com relativa facilidade, passando por concursos que são controlados pelo próprio Judiciário.
O acesso é muito mais fácil quando o candidato já tem alguém dentro do sistema. Os quase 400 desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo têm cada qual o seu gabinete com até 20 “auxiliares” e “estagiários”, indicados pelo próprio desembargador, muitos deles com jogos de indicação cruzada – um indicando o parente do outro.
Dentro dos gabinetes, facilmente enturmam e conseguem aplainar o caminho para os concursos. O mesmo acontece com outras profissões que, no entanto, não tem poder de Estado.
Mais visível tem sido o trabalho de escritórios de advocacia tendo como titulares parentes atuando nos próprios tribunais em que trabalham os magistrados.
Peça 3 – o sindicalismo no Judiciário
Outro processo de degeneração de poder dentro do Judiciário é a sindicalização de juízes, algo que provavelmente só existe no Brasil.
Juiz já tem poderes excepcionais. Não tem lógica ter sindicatos, um mecanismo de proteção que só se aplica para quem não tem poder individual, como um operário.
Há muitas e muitas Associações de Juízes, cuja única plataforma é pleitear e proteger benefícios e privilégios.
Essas associações são uma ameaça à cidadania. E deveriam ser sumariamente proibidas por lei da mesma forma que não é permitida a sindicalização oficial ou disfarçada para integrantes da ativa das forças armadas. Seria aumentar o poder de quem já tem poder.
Peça 4 – um poder cego
Assim como o sistema político, a corporação do Judiciário não é dotada de inteligência estratégica. Não há think tanks capazes de pensar o poder institucionalmente, os fatores de risco futuros, entender as oportunidades e ameaças, exercer um poder moderador de apetites e de arrogância. E qualquer alerta sobre os riscos futuros é tratada como agressão à classe, que não demonstra nenhuma abertura a novas ideias ou mesmo a discutir seu futuro.
Em suma, o Judiciário é a peça mais intrincada desse grande jogo de xadrez que o país precisa vencer, rumo à modernidade.
Quando essa geração de magistrados prestou concurso público, eles já sonhavam com os auxílios-moradias que lhes recheiam, agora, os bolsos e as contas bancárias. Era o objetivo: cargo vitalício, imunidade, bônus variados, super salários e, acima de tudo, poder. O judiciário brasileiro é essa bolha de privilégios.
É um judiciário que aceita o mais violento e desumano sistema carcerário do mundo. De quem é a responsabilidade conceitual pelo nosso sistema carcerário, afinal? Não é do poder judiciário?
O judiciário brasileiro é um judiciário que é conivente com um sem-número de violências. Com genocídios de índios – em curso neste exato momento. Com massacres em presídios. Com o país que mais mata homossexuais no mundo, com o maior volume de casos de feminicídios no planeta, com os altíssimos índices de casos de racismo, com o trânsito veicular mais violento do história, enfim, com tudo de pior que se puder imaginar no cenário estatístico dos horrores.
Não bastasse a lista acima ainda há mais: doenças do século 19 aflorando em plenas zonas urbanas, ausência total de competência para gerenciamento de crises humanitárias, corrupção escancarada em nomeações absurdas para ministérios. Como levar a sério um judiciário de um país assim?
Como levar a sério um judiciário que, com toda esse cenário de guerra, ainda goza dos salários mais altos do mundo, mais altos até mesmo que o salários dos juízes americanos? O judiciário é, por assim, dizer o grande nó da nossa sociedade.
Afinal, não eram os políticos a nossa chaga endêmica e atávica: eram os magistrados, a elite da elite da elite. Políticos ainda se submetem ao voto popular. Magistrado praticamente compra sua vaga no ministério público, decorando leis e regras gramaticais como um robô destituído de alma para ser aprovado no concurso – e se não for aprovado, entra com recurso.
O mais curioso de tudo isso é que foi Lula quem turbinou o judiciário com esse poder descomunal. Nos governos Lula, ademais, todos ganharam muito, do pobre ao milionário. Quem diria que um governo desses poderia provocar pânico em quem quer que fosse? É, praticamente, o Santo Graal da gestão pública: todos – todos – ganham.
Explicando porque Lula turbinou o judiciário: Lula respeitou a carreira, deu vários aumentos, empoderou líderes, nomeou indicados de classe, tornou a polícia federal uma corporação técnica e profissional etc. Mas não teve um ministro da justiça à altura – à altura do PT – para alertá-lo sobre o aparelhamento ideológico que ali se anunciava.
Lula teve, inclusive, a delicadeza de indicar um magistrado negro para o STF, um dos gestos mais bonitos de toda a sua gestão. Um gesto reparador, estratégico, pleno de humildade, mas olimpicamente desprezado pelo agraciado numa trágica e monumental manifestação de ingratidão pública.
Eis o que temos hoje: um judiciário sem negros. Apenas gente branca, cheirosa e bem nascida – uns até são trinetos de genocidas militares do século 19.
É tentador dizer: FHC é que estava certo. Sucateava o judiciário, não respeitava indicações de classe, distribuía favores, não dava aumentos, precarizava concursos e mantinha todo mundo sob rédeas curtas. Vai ver, seja o jeito correto de o executivo tratar o judiciário em um país que ainda não saldou sua dívida com a educação e com a igualdade social.
Repito um mantra que vem latejando na minha solitária cabeça há algum tempo: o PT acreditou na democracia. E não acreditou porque foi “ingênuo”. Acreditou porque a crença na democracia é o DNA do PT. Acordos obscuros e negociatas generalizadas é coisa do PSDB. Eles é que acham ingênuo acreditar na democracia. Crença em democracia para eles pega bem em propaganda partidária obrigatória ou em entrevistas controladas na imprensa parceira.
Um câncer desse tamanho como o judiciário brasileiro impregnado na sociedade requer muito mais do que uma intervenção cirúrgica. Requer uma liderança sem precedentes para restituir de volta o poder de produzir justiça de qualidade e com um mínimo de ética pública ao povo. Não há nada hoje no Brasil que provoque mais vergonha internacional ou doméstica que o nosso judiciário.
Talvez Lula tenha mais essa conexão histórica e política com a sociedade brasileira. Porque foi quando o judiciário resolveu eliminá-lo que a face verdadeira deste apodrecido poder se revelou. Devemos mais isso a Lula.
No sistema social indiano, a casta superior dos brâmanes teria saído da própria cabeça do deus Brahma, o que confere onipotência a seus membros e dever de obediência aos demais. Os integrantes do chamado Sistema de Justiça Brasileiro (composto pelo MPF, o Poder Judiciário e adicionalmente a Polícia Federal, na função de polícia judiciária) podem não se sentir filhos de Têmis, deusa grega da Justiça, mas nos últimos anos vêm agindo como uma nova casta, portadora exclusiva da honestidade e da decência, e por isso credenciada a usufruir de privilégios e a fustigar os outros poderes (desmoralizados e enfraquecidos demais para reagir), os partidos políticos e as organizações sociais.
Para vigiar e punir, vale inclusive a violação da própria lei, a partir de um auto-conferido direito de reinterpretá-la segundo as conveniências morais ou políticas. A ditadura judiciaria é este exercício de uma hegemonia autoritária pelos integrantes do sistema de Justiça. Não estamos longe disso mas os podres desta casta também começam a aparecer, mitigando o risco de uma nova e sutil forma de arbítrio, pois a sociedade está de olho também na Justiça, desde antes da condenação sem provas do ex-presidente Lula.
A cassação da medida de um juiz federal que confiscou seu passaporte foi mais uma evidência de que alguns juizes extrapolam, como disse o que garantiu a devolução do documento. Mas agora é tarde. Lula já foi privado do direito de ir e vir, de participar de evento da ONU sobre combate a fome na Etiópia.
Comecemos pela “coisa maravilhosa”, conforme definição de Roberto Carlos para a atuação do juiz Sergio Moro à frente da Lava Jato. Hoje soubemos que, tal como o outro campeão da moralidade, o juiz Bretas, Moro também recebe auxílio-moradia mesmo sendo proprietário de imóvel em Curitiba. Ele explicou que o faz para compensar a falta de aumentos salariais. Imagine se isso fosse dito por um de seus investigados.
Logo depois a bancada do PT entrou com ação junto ao Conselho Nacional de Justiça pedindo investigação da suspeita de subfaturamento na compra de um imóvel pelo juiz. Um apartamento de 256 metros quadrados não pode ter custado R$ 173 mil à época. Moro, o justiceiro que já foi tão aplaudido, até aqui foi dono dos destinos de suas vítimas. Prendeu-os preventivamente pelo tempo que quis, arrancando as delações premiadas que lhe interessavam, confiscou bens e ativos como quis, incorrendo inclusive, agora, numa grande contradição: mandou leiloar o tríplex da OAS, destinando os recursos apurados à Petrobrás. Mas ele mesmo não negou ter associado a suposta destinação do imóvel a Lula com contratos na petroleira? Esta falácia ainda precisa entrar naquele livro do professor Euclides Mance.
Nas gravações colecionadas pela Lava Jato, e principalmente nas que envolveram executivos da Odebrecht e da JBS, apareceram referências a subornos pagos a juízes (e membros de instâncias superiores). Nunca, porém, tais referências foram investigadas.
O Legislativo – cujos integrantes, com seus defeitos e virtudes eventuais, foram eleitos pelo povo – é visto pela casta judiciária como o rebotalho do sistema, casta inferior, cheia de impurezas. No sistema de Justiça, todos entram por concurso. Entretanto, as relações de parentesco são intensas, com casos e mais casos de pai que ajuda a mulher ou a filha a se tornar desembargadora, pois aos postos mais elevados se chega pelo filtro da influência política. É verdade que, por força das afinidades, ocorrem muitos casamentos entre colegas de carreira. O problema é que a soma de suas influências acaba degenerando em soma de vantagens, como vimos no caso do casal Bretas, a pedir dois auxílios-moradias, embora tendo imóvel próprio, numa confissão de que se trata de salário indireto para furar o teto constitucional. O que é isso, senão contestar a Justiça?
Em matéria de privilégios, o auxílio-moradia, que custa cerca de R$ 5,4 bilhões anuais aos cofres públicos, é o mais escandaloso mas não é o único. Eles têm cota para aquisição de livros e auxilio alimentação, como se precisassem de um vale para comer, ganhando o que ganham, quase sempre algo perto do teto de R$ 33 mil, afora os penduricalhos.
Em todas as estruturas do sistema, do STF à comarca, existem cargos comissionados que podem ser preenchidos sem concurso, tanto quanto no Executivo e no Legislativo, os únicos que levam a fama. São ocupados também por parentes, muitas vezes de forma dissimulada, com a troca de vagas entre magistrados para não ferir a lei do nepotismo.
O Supremo, como topo do sistema, é o estuário da hipertrofia do poder, de sua superposição aos demais. Ontem o presidente da República deixou de discursar, na abertura do ano judiciário, porque temeu um choque com a presidente do tribunal, que mandou uma brasa verbal condenando os que criticam decisões judiciais. O recado era para o PT mas serviu a meio mundo, inclusive ao chefe ilegítimo do Executivo, proibido pela Justiça de nomear uma ministra. Uma ministra inapta ao cargo mas a prerrogativa é do chefe do outro poder. Azar dele se quer nomear alguém inadequado para atender a um partido.
Ali, enquanto prevalecer o mandato vitalício, teremos 11 ilhas, onze vaidades e não um colegiado comprometido unicamente com a aplicação da lei. Quando for tempo de passar a limpo também o sistema de Justiça, será preciso aprovar o mandato com duração fixa.
Em relação ao MPF, será preciso estabelecer limites para seu poder amplo e difuso. E a Polícia Federal talvez tenha que ser dividida em duas. Uma para atender ao Judiciário, e outra que cuide de atender o Poder Executivo em tarefas como o combate a crimes da alçada federal, tarefa hoje negligenciada, pois todos os delegados querem cuidar é deste assunto que rende manchetes, o combate à corrupção.