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A decisão liminar do ministro Roberto Barroso do STF sobre indulto de natal não se sustenta juridicamente; "a crítica ao caráter geral e abstrato do indulto tem natureza política, mas não jurídica"

Ação Direta de Inconstitucionalidade não é bagunça, por Marcio Ortiz Meinberg

Ação Direta de Inconstitucionalidade não é bagunça

por Marcio Ortiz Meinberg

decisão liminar do ministro Roberto Barroso do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5874 não se sustenta juridicamente, seja quanto ao seu conteúdo, seja quanto à forma adotada.

Com relação ao conteúdo, a decisão tem fundamentação insuficiente ou equivocada. Abordemos rapidamente os principais argumentos:​

O argumento de que a recomendação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) foi contrariada não é suficiente para impugnar qualquer disposição do decreto, pois a concessão de indulto é competência privativa do Presidente da República (art. 84, XII, CF). Cabe somente ao Presidente fazer a avaliação da conveniência a respeito do indulto, bem como definir a extensão dele (sem contrariar, é claro, outras disposições constitucionais). A opinião do CNPCP e quaisquer outros órgãos é meramente consultiva (e não impositiva).

O argumento de que a finalidade do indulto ocorre à revelia do sentimento social não apenas é risível (uma vez que o Judiciário não deve julgar conforme a opinião pública), como é perigoso (uma vez que o STF não é um Poder democraticamente constituído e não cabe a ele definir qual é o “sentimento social”, temos eleições para isso). O mínimo que se esperaria de um ministro do STF que tanto admira o “iluminismo” é que estimulasse com mais vigor a função contra-majoritária da Suprema Corte e não o contrário.

O argumento de que o indulto esvazia a “política criminal estabelecida pelo legislador” também não tem substância, uma vez que se trata de um decreto com fundamento constitucional. Em primeiro lugar, o STF somente pode impugnar o decreto no que este venha a contrariar a Constituição Federal, e não no que contrariar a legislação ordinária (e não há qualquer disposição contrariada no que se refere à política criminal). Em segundo lugar, o objetivo do indulto sempre será contrário ao da política criminal, pois, caso fosse um mero desenvolvimento da política criminal, tal competência não teria sido atribuída constitucionalmente ao Presidente, mas teria sido apenas prevista em lei, para mera aplicação pelo Judiciário. O indulto é sempre uma “exceção” à política criminal, porém uma exceção prevista expressamente na Constituição.

O argumento de que o perdão da multa “desatende os fins constitucionais” e que houve “excesso de leniência” constituem avaliações essencialmente políticas da conveniência e extensão do indulto, o que NÃO É atribuição do Judiciário, mas sim do Presidente da República. Seria necessário que o ministro Barroso tivesse identificado uma infração direta a alguma regra ou princípio constitucional, mas não o fez (porque não há). A opinião política do STF não pode ser critério constitucional para a impugnação de qualquer ato dos demais Poderes.

Com relação à forma da decisão, a medida cautelar do ministro Barroso está absolutamente errada! Oras, ação direta de inconstitucionalidade não é bagunça, devendo ser julgada estritamente nos termos da Constituição e conforme o rito da lei nº 9.868/99.

De acordo com o artigo 10 da lei nº 9.868/99, “salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal”. Ocorre que o recesso do STF encerrou-se em 31/01/2018, ou seja, a decisão monocrática é absolutamente incabível neste caso. Este mesmo entendimento pode ser identificado no artigo 170, Parágrafos 1º e 3º, do Regimento Interno do STF e (por que não?) na própria Constituição Federal, que estabeleceu a regra da “reserva do plenário” (por maioria absoluta de membros) para declarações de inconstitucionalidade (art. 97, CF).

Além disso, lei nº 9.868/99 prevê as seguintes possibilidades:

  1. Impugnação da lei ou ato normativo (art. 3º, lei nº 9.868/99), ou seja, trata-se de uma ação negativa, pela qual a decisão judicial exclui do sistema uma norma que seja incompatível com a Constituição (que tem hierarquia maior);
  2. Declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto (art. 28, Parágrafo único, lei nº 9.868/99), ou seja, também é uma ação negativa, pela qual o STF determina que, dentre as diversas possíveis interpretações de uma norma, algumas delas não podem ser realizadas (por serem incompatíveis com a Constituição); e
  3. Interpretação conforme a Constituição (art. 28, Parágrafo único, lei nº 9.868/99), ou seja, o STF direciona o sentido da norma inferior, dentro das possibilidades semânticas do texto, para que esta fique compatível com a Constituição.

Em suma, ao julgar a constitucionalidade do Decreto nº 9.246/2017 (que concedeu o indulto natalino), o STF pode (1) impugnar (EXCLUIR) disposições; (2) determinar que alguma disposição NÃO POSSA ser interpretada em determinado sentido (permitindo os demais); e/ou (3) determinar que alguma disposição SEJA OBRIGATORIAMENTE interpretada em um determinado sentido (impugnando os demais).

Ao suspender alguns dispositivos do decreto, a decisão do STF está correta quanto a forma (ainda que questionável sobre todos os demais aspectos), no entanto, ao modificar o teor do artigo 1º, inciso I, do Decreto nº 9.246/17, o ministro violou flagrantemente a Separação dos Poderes. O referido dispositivo previa que o indulto natalino seria concedido aos presos que, até 25 de dezembro de 2017, tivessem cumprido “um quinto da pena, se não reincidentes, e um terço da pena, se reincidentes, nos crimes praticados sem grave ameaça ou violência a pessoa”. A decisão do STF estabeleceu que “o indulto depende do cumprimento mínimo de 1/3 da pena e só se aplica aos casos em que a condenação não for superior a oito anos”.

Oras, não há qualquer possibilidade semântica de interpretar o artigo 1º, inciso I, do Decreto nº 9.246/17, no sentido proposto pelo ministro Barroso. Em primeiro lugar, 1/5 e 1/3 são razões matemáticas, cujo sentido é muito bem definido, e que são diferentes entre si. Para modificar o número indicado, seria necessário que houvesse uma disposição constitucional expressa indicando algum deles (até onde se sabem o Código Penal não faz parte da Constituição), sendo impossível que, por mera interpretação dos princípios constitucionais (sem auxílio de uma regra expressa), 1/5 se transforme em 1/3. Em segundo lugar, ao estabelecer que, no caso o indulto com base no artigo 1º, inciso I, do Decreto nº 9.246/17, “só se aplica aos casos em que a condenação não for superior a oito anos”, o STF introduziu no sistema uma disposição totalmente nova, o que não é atribuição do Judiciário (a interpretação conforme a Constituição não pode ser utilizada para introduzir novas normas no sistema). Ao modificar o teor do decreto, introduzindo elementos completamente estranhos ao texto e a seu sentido, o STF viola gravemente o Princípio da Separação dos Poderes, ou seja, é inconstitucional.

Em suma, a decisão do STF sobre o indulto natalino tem fundamentação altamente questionável (quanto ao conteúdo) e a decisão é flagrantemente inconstitucional quanto à forma (especialmente no caso do art. 1º, I, Dec. 9.246/17).

Quem puder ler a Medida Cautelar na integra certamente perceberá que a real motivação por trás de toda a decisão é a crítica do ministro ao caráter geral e abstrato que o indulto presidencial no Brasil. Apesar da crítica, o relator não declarou a inconstitucionalidade de tal formato (caráter geral e abstrato do indulto), ou seja, reconheceu este como constitucional (ou prevaricou gravemente). Sendo assim, a crítica ao caráter geral e abstrato do indulto tem natureza política, mas não jurídica. O ministro Barroso tem todo o direito à sua opinião política sobre qualquer tema (como qualquer cidadão), mas, para implementar tais opiniões, melhor seria desincompatibilizar-se do cargo no Supremo Tribunal Federal e se candidatar ao Congresso Nacional. Enquanto integrante do Supremo Tribunal Federal, deve respeitar as prerrogativas do Executivo e Legislativo, balizando-se pelo princípio da Separação dos Poderes.