Como o governo Temer está usando dinheiro da Saúde para engordar empresas privadas
Sugestão de Spin GGNauta
Por José Augusto Vasconcellos Neto*
PIUBS — Um Programa de Governo preocupado com a saúde… das empresas!
No Viomundo
Em boa hora o Programa de Informatização das Unidades Básicas de Saúde (PIUBS) foi suspenso pelo Tribunal de Contas da União.
Mas o TCU apenas arranhou a superfície do monstrengo, apenas vislumbrou uma pontinha do iceberg.
Sei que pessoas crédulas e de bom coração acreditaram que se tratava de um projeto para, de fato, fortalecer a informação nas Unidades Básicas de Saúde e no Programa de Saúde da Família. Ledo engano!
Realmente não é muito fácil entender do que trata o PIUBS apenas lendo as normas e publicações oficiais; mas, assistindo com atenção as apresentações do ministro e de outros executivos do governo federal é possível vislumbrar as entrelinhas, o que não foi escrito, o que foi desdito, o que está implícito, e encontrar o fio da meada.
Este programa é mais uma ação da quinta-coluna que infiltrou o Ministério da Saúde e que trata de sabotar, por dentro, o SUS.
Pode até soar estranho à primeira ouvida, mas o PIUBS não tem nada a ver com o SUS ou com a saúde.
Também não é, nem de longe, um verdadeiro programa de informatização da atenção básica.
Não incorpora nem o conhecimento, nem as preocupações das comunidades de saúde pública, de medicina de família, ou de informática em saúde.
Não é por acaso nem por falta de coincidência que ninguém do Departamento de Atenção Básica (DAB) sentava à mesa na qual o ministro anunciava o programa.
Afinal, o campo do PIUBS é outro…
O PIUBS é uma iniciativa para criar mercado para algumas empresas de Tecnologia da Informação em saúde.
Basta ver as apresentações e documentos do MS, onde fica claro que a preocupação maior é sempre com as empresas.
Neste projeto as empresas ficaram com o filé, com o recurso, com a receita, com a participação na chamada pública e na redação dos editais; os municípios e o SUS ficaram com a conta, com as responsabilidades e com as penalidades.
Às empresas o dinheiro e as benesses, aos municípios as obrigações e o chicote; isto é “market first”, como está na moda dizer.
O cérebro autor do projeto era, até recentemente, consultor de empresas, ensinando como organizações privadas podem ganhar dinheiro e ter lucro ao fazer negócios com o setor público.
Uma atividade que não é necessariamente ilegal.
Mas parece que esse espírito empresário persistiu e predominou, mesmo quando o consultor se tornou diretor do Ministério da Saúde — e se colocou em posição de transformar o ministério num portentoso balcão de negócios.
Tal como proposto, o principal resultado prático da implantação do PIUBS será reduzir barbaramente a, digamos assim, “fatia de mercado” do “e-SUS AB”.
Hoje o “e-SUS AB”, software oficial do próprio Ministério da Saúde, expande sua base instalada e ganha adeptos praticamente sem concorrência.
É muito difícil para empresas privadas competirem com um software que é bom e gratuito.
Os agentes de mercado, empresas e consultores, estão obviamente descontentes.
Por isso o PIUBS propõe o tal esquema de credenciamento, que, entre aspas, “inviabiliza a competição”.
Por isso o mecanismo de escolha das soluções, que esconde o “e-SUS AB” ao transformá-lo em piso mínimo, e favorece os ditos diferenciais — diferenciais de mercado, bem entendido! — ou seja, as supostas vantagens de mercado que os softwares privados anunciam, em sua propaganda por vezes enganosa.
(Mas nenhuma vantagem de mercado pode ser tão boa para o SUS quanto usar um software público!)
Para entender melhor o que está em jogo, tentemos reduzir pelo absurdo: por que o MS não propôs, como seria esperado e como seria adequado, um grande programa de apoio à implantação do “e-SUS AB”?
(Que afinal de contas é o software desenvolvido pelo próprio ministério para a Atenção Básica!)
Por que não estimular a formação de equipes locais de informação em saúde, a construção de inteligência pública em epidemiologia e gestão do processo de trabalho, por que não fomentar comunidades de usuários e desenvolvedores?
Por que abrir o financiamento para produtos privados e comerciais, que em geral são cópias do “e-SUS AB” mas estão sujeitos às armadilhas e amarrações da propriedade intelectual?
Por que favorecer o produto privado no confronto com o software público?
Bastaria um detalhe, restringir o programa de financiamento ao uso do “e-SUS AB” e do módulo de Prontuário Eletrônico do Paciente (PEC) para, ao mesmo tempo, descaracterizar e talvez salvar o PIUBS.
Fixar-se no público para contornar a malvadez original seria o caminho óbvio e fácil para civilizar a iniciativa.
Mas com o PIUBS o MS tenta criar um enorme mercado de serviços e software para empresas que hoje disputam uma demanda escassa e avara, e por isso enfrentam muita dificuldade de capitalização.
O PIUBS tem por objetivo resolver uma crise que é do mercado, e não as necessidades do SUS.
E, se tiver sucesso, vai colocar pelo menos 500 milhões de reais na mão dessas empresas ainda em 2018, ano eleitoral (e mais 3,5 bilhão por ano depois disso!).
Não surpreende, portanto, que o ministro tenha renunciado em abril para se candidatar… tem que aproveitar o momento…
Parte do dinheiro sai, perversamente, dos próprios municípios.
Descontar do Piso de Atenção Básica (PAB) variável, minguado repasse às UBSs, qualquer que seja o percentual, é uma enorme sacanagem, um requinte de crueldade.
O setor de saúde como um todo já está penalizado e desfinanciado, ainda mais a atenção primária.
E agora querem pegar dinheiro da saúde para financiar um projeto de capitalização de grandes empresas.
Dentro de mais alguns meses ficará claro e escancarado que os milhões do PIUBS vão irrigar empresas e interesses singulares e não a informação ou o benefício públicos.
Virá então algum astuto a dizer que o suposto êxito reflete a superior destreza da tão privada iniciativa.
Mais certo seria reconhecer, desde já, que será o resultado calculado da canhestra arquitetura dos critérios.
No desvão entre atos e intenções, entre o escrito e o escondido, está a mesma velha mandinga do capitalismo de compadrio e do patrimonialismo: a arte marota de socializar o custo dos investimentos, mantendo privada a propriedade, a acumulação e o lucro.
E que ninguém se engane.
Este PIUBS não tem o mérito, a limpeza ou a beleza dos projetos de autêntico fomento à inovação, à criatividade, à ciência aplicada.
Não se trata aqui de produzir tecnologia, conhecimento ou novidade.
Não que não seja necessário, pois muito há, ainda, que se inventar no campo dos prontuários eletrônicos e do software em saúde.
Nossos prontuários são limitados e atrasados, os do mercado ainda mais que o PEC.
Mas, dane-se a inovação necessária, a questão aqui é apenas capitalizar alguns magnos maganos.
Pois, que novidade há em juntar na força bruta das parcerias comerciais um punhado de tecnologias velhas que eles tanto gostam de chamar de “soluções”?
Que mérito há em saber trafegar pelas sinecuras e descolar um caro credenciamento?
Este jogo não é para iniciantes e sim para iniciados; o PIUBS não choca ovos, apenas engorda os porcos.
Não é outro o sentido de incluir no edital questões estranhas à saúde e ao prontuário do paciente.
As empresas e consórcios tem que fazer cabeamento, fornecer conectividade, equipamentos, software, serviços, e mais: biometria e câmeras de vigilância!
Qual o significado disso?
Ainda nenhum software do MS usa biometria, mas isso já é exigido no credenciamento.
Vigilância patrimonial nada, absolutamente nada, tem a ver com prontuário médico — a não ser na doentia visão desses ministros inimigos do público, para quem o SUS tem que ser controlado e vigiado!
O efeito concreto e prático de estabelecer esse sarrafo é podar do certame as empresas menores, especializadas ou iniciantes, e favorecer as grandes integradoras, empreiteiras de obras dúbias, aquelas mesmas que desde sempre exploram contratos com o Estado, a parcela parasita do mercado que vive de sangrar o erário.
E por falar em mercado, quem vocês imaginam que será a grande beneficiária deste projeto?
A primeira empresa a credenciar sua solução privada de “saúde pública”?
Não por acaso empresa e consultor-diretor vêm do mesmo estado, e da mesma cidade.
Não por acaso essa empresa se capitalizou com acordos e parcerias com o mesmo estado e sua capital.
Não por acaso essa empresa se tornou líder no mercado de software hospitalar graças a polpudas emendas parlamentares.
Para quem sabe onde achar e como cavar, não falta o que mamar…
Quem conhece a história do SUS há de se lembrar ainda do REFORSUS/Hospub, projeto similar ocorrido na virada do século (projeto de Reforço à Reorganização do SUS, levado a cabo de 1998 a 2002).
Naquela época o MS empurrou, Brasil afora, com verba e metodologia dos bancos de fomento internacionais (Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento), a implantação do hoje obsoleto Hospub, o antigo Sistema de Informatização Hospitalar do Ministério da Saúde.
Dezenas de empresas pequenas e médias se credenciaram e informatizaram centenas de hospitais.
O vício daquela época era outro, a perspectiva assistencialista do fomento internacional, a mesma visão envergonhada, caritativa e não-estruturante da filantropia que enterra milhões na África sem mudar condições estruturais.
Aqui também, este projeto dos anos 1990 foi “um falso sucesso” (por assim dizer), atingiu os objetivos e metas da agenda e das agências internacionais, sem contudo gerar resultados locais duradouros, sem construir, sem organizar, sem deixar legado real na informatização dos hospitais da época.
Um verdadeiro fracasso seria mais correto dizer, já que apenas acrescentou dívida externa para os nossos filhos e netos.
Pois o PIUBS é ainda pior e mais descarado, improvisado e desorganizado, favorecendo grandes empresas sem garantir sequer o controle público sobre os milhões que serão mal-gastos, pois até o acompanhamento será terceirizado e privatizado!
Mas as maldades não param por aí.
O projeto segue, infelizmente, a tradição centralizadora do MS. Prioriza as conexões com os sistemas de informação federais.
E deixa ao deus-dará qualquer integração com sistemas e soluções locais, muito mais importantes para quem está na ponta.
Ao deus-dará não, pois podem ser contratadas, em paralelo, das mesmas empresas privadas vencedoras — neste caso com dispensa de licitação por inviabilidade de competição.
Ou seja, além de forçar (e subsidiar) a entrada da empresa no município, o PIUBS fomenta ainda um enorme mercado secundário de serviços, de um modo que faz o setor público perder autonomia frente às empresas contratadas.
Ao contrário do que pressupõe o projeto, software de saúde não é “commodity”.
Não dá para trocar de sistema como quem troca de roupa; mas o PIUBS ignora o que cada município já fez, já acumulou, e o que cada unidade precisa.
O PIUBS ignora detalhes e especificidades, e padroniza, impõe, de cima para baixo e de fora para dentro.
As implantações do PIUBS, feitas goela-abaixo dos municípios por equipes de técnicos apressados e sem experiência prévia em saúde, serão certamente traumáticas para as unidades básicas, especialmente as que já usam o “e-SUS AB” e forem obrigadas a trocar de sistema.
Municípios de porte médio e grande vão perder o controle da sua rede básica ao terceirizar desta maneira tortuosa sua informática.
Perderão o que já fizeram, seus suados progressos, seu histórico de dados e suas integrações com outros serviços municipais, como farmácia, regulação, vigilâncias.
Terão de pagar caro para as tais empresas privadas se quiserem fazer qualquer coisa além do mínimo contratado pelo MS. E ficarão na mão novamente quando os contratos acabarem.
Afinal, o que sobrará ao término desses contratos, depois de sessenta meses?
Para os municípios restará o nada, o vazio, computadores retirados, sistemas desligados, informação perdida, talvez o caos.
Pois este projeto não constrói, não é estruturante, não vai deixar legado.
Depois de 60 meses os municípios serão ou extorquidos ou abandonados pelas empresas.
Quem quiser que continue pagando, pelo preço que a empresa impuser. Quem não quiser perderá tudo em 120 dias.
Para os municípios médios e grandes a saída digna é, pois, fazer a informatização com suas próprias pernas, com sistemas próprios ou com o “e-SUS AB”, garantindo autonomia sobre o projeto.
E, depois, tentar ganhar algum troco deste temeroso MS dentro da linha de custeio do PIUBS.
Esta seria a única forma de tirar algum proveito perene do projeto.
Já os municípios pequenos ficaram reféns do ministério. Como, pelo outro lado, há a ameaça insana de cortar repasses para quem não se submeter aos controles draconianos e informatizar no prazo exíguo, o risco é muito grande.
O PIUBS obriga então o SUS a se tornar cliente de uma indústria privada atrasada e dependente da capitalização estatal.
Será o fim da informação e informática públicas em saúde?
Não surpreende que os temerosos ministros da saúde acreditem que a saúde possa ser reduzida a números, e que implantar prontuário eletrônico seja tarefa simples e rápida.
Estão errados, redondamente equivocados, mas não se esperaria mais, nem menos, deste governo e dos currículos que o compõem.
Ainda assim, surpreende um pouco a mansidão dos órgãos da sociedade organizada ante a sucessão de desatinos.
O projeto foi feito por políticos sem compromisso com o SUS, por técnicos sem experiência ou vivência em saúde pública, e por burocratas desde sempre afastados da ponta e dos serviços.
A implantação do prontuário eletrônico na atenção básica suscita problemas e cria oportunidades; mas as empresas privadas não saberão nem resolver os problemas, nem aproveitar as oportunidades.
Um dos problemas é o aumento no tempo de atendimento, cujo impacto tem sido largamente negligenciado até agora.
Com equipes de saúde da família subdimensionadas e sobrecarregadas, como equacionar um atendimento mais demorado, ainda que de melhor qualidade?
Além disso, a implantação do prontuário eletrônico é uma excelente oportunidade para rediscutir processos de trabalho e fluxos na unidade básica… — mas qual empresa privada de TI saberia lidar com isso?
Ora, essa é a seara dos sanitaristas, dos profissionais de saúde da família, dos militantes do SUS, do pessoal da ponta.
O PIUBS ignora solenemente, arrogantemente, a sabedoria e o conhecimento de quem entende do assunto, e mal disfarça seu verdadeiro propósito comercial.
Ainda que na forma de hipóteses a serem comprovadas, os efeitos macro-econômicos e sistêmicos do PIUBS já podem ser prognosticados:
• (1º) enfraquecimento do “e-SUS Atenção Básica”;
• (2º) transtorno imediato no funcionamento e operação das unidades básicas;
• (3º) terceirização e enfraquecimento ainda maior dos setores de informação e informática na esfera municipal do SUS;
• (4º) concentração de mercado e perda de espaço por empresas regionais pequenas e médias, que não consigam se credenciar e competir com as grandes favorecidas do MS; e
• (5º) oportuníssima capitalização de uma grande empresa brasileira de software em saúde, justo no momento em que ela parte para conquistar o mercado latino-americano.
Decodificar este preocupante projeto é tarefa urgente que o TCU re-colocou na agenda do momento.
Todos os interessados no Sistema Único de Saúde e na administração pública (Conselho Nacional de Saúde, Comissão Intergestores Tripartite, Ministério Público, Conselho Nacional de Secretários [Estaduais] de Saúde, Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, Conselhos Estatuais de Secretários Municipais de Saúde, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, etc) precisam colocar este tema também em suas agendas e decifrar esta esfinge.
A corroborar-se a presente interpretação, reconhecer-se-á mais um golpe contra o SUS. Vamos aproveitar o ensejo e corrigir isto de uma vez!
*José Augusto Vasconcellos Neto é médico sanitarista e especialista em informática médica