‘Magistrado não é para dizer o que acha, mas para dizer o que a lei determina’
O Judiciário começou a determinar “um certo sabor a alguns juízes, a alguns magistrados, de começar a invadir, a tomar decisões, que não são propriamente as decisões que estão na lei, mas sim as decisões que ele acha que deveria ser”, diz Nelson jobim, ex-ministro do STF e ex-ministro da Defesa.
6 de Agosto de 2018 às 09:15
Fernanda Canofre, Sul 21 – Há dois anos, Nelson Jobim se tornou sócio e membro do Conselho de Administração do Banco BTG Pactual. Banco que ganhou as manchetes quando um de seus fundadores, André Esteves, teve o nome envolvido em investigações da Operação Lava Jato. Desde que deixou o cargo de ministro da Defesa, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), em 2011, Jobim saiu da cena pública. Dos 30 anos nela, quatro foram trabalhando com governos do PT, desde que o então ministro da Justiça, Tarso Genro (PT), o convidou para ajudar o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante a crise aérea de 2007. Segundo um perfil publicado na revista piauí, Jobim hesitou, conversou com a esposa e acabou decidindo dar o sim, comovido pelo acidente da TAM, no aeroporto de Congonhas, que matou 199 pessoas.
Antes disso, tinha sido homem de confiança de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), nos anos 1990. Foi ministro da Justiça e nomeado ao Supremo Tribunal Federal (STF) por ele. Filiado ao MDB desde meados dos anos 1970, Jobim dividiu apartamento com José Serra (PSDB), foi seu padrinho de casamento e votou no tucano nas eleições de 2010, mesmo ocupando o cargo no ministério de Lula, que iria manter com Dilma.
“Eu me dou com todo mundo”, disse ele durante a entrevista ao Sul21, realizada na sexta-feira (3), durante uma passagem por Porto Alegre, para um evento promovido pela Escola do Legislativo da Câmara de Vereadores. Essa seria a explicação para o porquê do seu nome ser cogitado como um nome de “união”, nas últimas crises institucionais de Brasília, acredita.
Natural de Santa Maria, formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jobim é filho de Hélvio Jobim, advogado eleito presidente da Arena na sua cidade natal, nos anos 1970, e neto do ex-governador do Estado e embaixador, Walter Só Jobim, que participou da Revolução de 1930 ao lado de Getúlio Vargas.
Em maio de 2017, quando os áudios de Michel Temer (MDB) conversando com o empresário Joesley Batista sobre a situação de Eduardo Cunha (MDB) vazaram, Nelson Jobim era o nome forte cogitado para ser colocado em uma eleição indireta para substituir o vice de Dilma. Hoje, ele diz que “não tinha o mínimo interesse” em aceitar.
Mesmo de fora, porém, continua sendo alguém com muito a dizer sobre o que acontece no cenário político brasileiro. Ainda pareça tomar cuidado na fala. Em entrevistas, avaliou como errada a decisão da presidente do STF, Carmen Lúcia, de votar o habeas corpus de Lula antes da questão da prisão após condenação em segunda instância. Homem que aproximou os governos do PT das Forças Armadas e conseguiu enterrar o debate sobre revisão da Lei da Anistia no Supremo, Jobim diz que o deputado Jair Bolsonaro (PSL) não representa o pensamento dos militares brasileiros.
Na entrevista abaixo, ele fala sobre o cenário atual da política e do Judiciário, porque decidiu ficar de fora do pleito deste ano e o que acha de como o Brasil lida com o passado da ditadura militar:
Sul21: Quando vazaram os áudios de Michel Temer com o empresário Joesley Batista, da JBS, se falava sobre a possibilidade de eleições indiretas, seu nome era apontado como um dos favoritos. O senhor teria aceitado se postular?
Nelson Jobim: Trabalhar com “se” é muito difícil. Aquilo foi ideia que surgiu de outros. Eu estou fora da política há muito tempo. Fiquei trinta e poucos na atividade pública, agora estou em atividade privada, não tinha o mínimo interesse em fazer isso.
Sul21: Seu nome era colocado como possibilidade porque o senhor era visto como alguém que poderia “unir”. O senhor se enxerga dessa maneira?
Jobim: Eu me dou com todo mundo. Esse é o juízo dos outros. Não avalio o juízo dos outros em relação a mim. Ou seja, eu tenho relação com todo mundo, passei por várias áreas, vários setores, fui razoavelmente bem em cada um deles, então, as coisas agora encerraram.
Sul21: Esse ano circulou na imprensa que o senhor teria perdido o prazo para regularizar sua situação partidária e ter possibilidade de ser o candidato do MDB. O jornal do O Estado de São Paulo disse que o senhor recorreria no Tribunal Regional Eleitoral.
Jobim: Não houve nenhum problema, estava tudo correto. Não lembro o que era, porque isso foi conduzido pelo partido em Santa Maria. Era só para regularizar a situação, porque eu não tinha nenhum interesse em ser candidato. Não aceitei, inclusive, qualquer tipo de candidatura. Está tudo regularizado agora, sou filiado desde 1970 e poucos. Só ficou suspensa a filiação durante o período que eu fui membro do Supremo Tribunal Federal.
Sul21: Intenção de ser candidato o senhor não tem?
Jobim: Nenhuma (risos).
Sul21: Há uma ala do MDB que gostaria de ter o senhor como candidato presidencial do partido.
Jobim: Houve sim, eu fui sondado diversas vezes. É aquelas coisas de sempre. Mas não é possível.
Sul21: Por que não, ministro?
Jobim: Porque já passou. Já passou e já virei a página.
Sul21: E a possibilidade de ser vice em alguma chapa? Em 2006, o senhor foi sondado para ser o vice de Lula na campanha de reeleição.
Jobim: Fui, mas muito remotamente. Agora estou com mais de 70 anos, tenho que sossegar um pouco. Estou fora.
Sul21: Isso tem a ver com alguma frustração com a política?
Jobim: Não, eu viro a página. Não é frustração com a política, mas agora estou fazendo outra coisa. Gosto do que estou fazendo e ponto.
Sul21: Em entrevistas recentes, o senhor criticou a decisão da presidente do STF, ministra Carmen Lúcia, em ter pautado a decisão sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula antes de discutir a Ação de Declaração de Constitucionalidade (ADC), sobre execução da pena após condenação em segunda instância. Por quê?
Jobim: Ela tinha que julgar primeiro a matéria abstrata, ou seja, onde não era fulanizado o processo. Discutia-se a tese, em que havia, inclusive, a possibilidade de que essa tese fosse vencida. Mas, venceu colocar em pauta o habeas corpus que era uma questão específica. Tanto é que criou-se um ambiente difícil dentro do tribunal, inclusive, para a ministra Rosa Weber, que tem uma posição de obedecer o colegiado e ficou aquele problema: havia uma decisão do colegiado anterior, sobre o problema da segunda instância, que não tinha sido reformada, ela teve que votar contra o habeas corpus ao Lula, por isso. Mas, como seria se tivesse sido votada primeiro a matéria principal? Ou seja, o habeas corpus de Lula era uma matéria subordinada à decisão. Foi votado o subordinado antes do subordinante.
Sul21: O que o senhor achou do vaivém de decisões sobre outro habeas corpus de Lula, no dia 8 de julho?
Jobim: Eu não conheço bem o caso em si, mas foi algo que ficou marcado. Marcado pelo fato de que, num determinado momento, um juiz que estava em férias, decide interromper suas férias para voltar a tomar jurisdição. Não estou dizendo que a decisão tenha sido certa ou errada, sobre um habeas corpus que eu não conheço, mas acho curioso que, quem está sem jurisdição, porque está gozando de férias, acabe interrompendo as férias para se opor a uma decisão ou outra. Mostra que havia um certo tumulto ali.
Sul21: Como deputado constituinte, o senhor participou da comissão responsável por discutir a separação de poderes. Há poucos minutos, ouvimos o juiz Leandro Paulsen, presidente da 8ª turma do TRF4, que condenou Lula, falando que gostaria que o Judiciário fosse “menos ideológico”. Como o senhor observa isso?
Jobim: Há uma certa disfuncionalidade. As instituições estão funcionando, mas há uma certa disfuncionalidade. A disfuncionalidade está na Câmara, no Executivo, no próprio Judiciário. Há um momento em que o velho está terminando e o novo ainda não pode nascer.
Sul21: Como se resolve isso?
Jobim: As coisas acabam se acertando. As coisas vão andando e a lucidez começa a tomar, porque o que ocorre hoje no Brasil, principalmente em termos de política, é que tem uma variável nova que é o ódio. O adversário não é mais adversário, é inimigo. Então, você obstruiu qualquer tipo de diálogo e a política é, claramente, o diálogo dos controversos. Ou seja, onde adversários têm que dialogar para criar uma solução alternativa que possa conduzir o país para frente.
Sul21: O senhor concorda com uma frase que vem sendo muito repetida, de que hoje temos a judicialização da política e a politização do Judiciário?
Jobim: Ah, não há dúvida. Ocorre que os partidos políticos e os setores políticos não conseguiram resolver suas divergências e acabaram levando para o Judiciário. O Judiciário não intervém voluntariamente em questões, ele é sempre demandado por alguém e quem demanda são exatamente as entidades políticas. Houve um momento, anos atrás, quando eu estava no Tribunal Eleitoral, principalmente, e no Supremo, em que não havia entendimento dos políticos, o sujeito era derrotado em uma decisão qualquer, recorria ao poder Judiciário. Então, houve um deslocamento muito forte em relação às divergências políticas não ajustadas, exatamente pela falta de diálogo. Esse fato, de ter ido para o Judiciário, começou a determinar um certo sabor a alguns juízes, a alguns magistrados, de começar a invadir, a tomar decisões, que não são propriamente as decisões que estão na lei, mas sim as decisões que ele acha que deveria ser. Aí você entra num momento muito complicado. Uma coisa é o seguinte, magistrado não é para dizer o que ele acha, mas para dizer o que a lei determina. Se quiser fazer alguma coisa para sustentar “o que acha”, então tem que entrar na política. É lá, no Parlamento, que você tenta sustentar ponto de vista.
Sul21: O senhor acha que, em geral, é essa a situação que temos visto?
Jobim: Está avançando muito isso. É uma espécie de tentativa de alguns setores do Judiciário, não todos, de extrapolarem a função judicial para pretender – inclusive, passa-se isso com o Ministério Público – ser o gestor, determinar os atos de gestão e os atos de políticas públicas propriamente ditas.
Sul21: Há uma interpretação de que Lula é preso político. O senhor concorda?
Jobim: Aí já é difícil. Ser preso político é um juízo de valor, de natureza política. A questão é que temos uma série de processos em relação ao ex-presidente, as coisas estão sendo postas dessa forma, mas ele não é acusado de ter praticado crime político. Portanto, a questão não é política. Agora, evidente que eu não conheço os processos, o Zé Paulo [Sepulveda] Pertence, que foi meu colega no Supremo, é um dos advogados do presidente, lamento a forma como as coisas têm sido conduzidas, mas não conheço os detalhes do procedimento.
Sul21: A afirmação levaria em conta o contexto das eleições deste ano, onde ele pode ser impedido de concorrer por ocasião da prisão.
Jobim: A tese que está sendo posta é que esse processo todo se destinaria a isso. Agora, eu não posso afirmar isso. Se é ou não é, mas isso é uma consequência.
Sul21: O senhor tem uma posição bastante definida em relação à execução da pena antes do trânsito em julgado. Ou seja, da prisão após condenação em segunda instância, quando ainda cabe recursos. Pode explicá-la?
Jobim: Sim, eu sou contra. Porque nós discutimos isso em 1988. Essa matéria foi discutida lá, estabelecendo que a presunção de inocência vai até o trânsito em julgado da sentença. Imagina o seguinte, se você não tem a presunção de inocência e tem pena de morte, como funciona? Veja, o problema da presunção da inocência não é algo que vá criar impunidade, é direito do cidadão. A segurança pública não é para o Estado, é para o cidadão. O cidadão é que é o destinatário de tudo. Portanto, não pode se pensar que um personagem estranho chamado “a sociedade” tem que ser protegido. Sociedade é um conceito abstrato, quem vive no mundo são os indivíduos, são os cidadãos.
Sul21: Como alguém que foi ministro da Justiça, como o senhor avalia o impacto que isso pode ter, caso o entendimento seja mantido, para a manutenção do sistema prisional brasileiro, que já vive uma crise?
Jobim: É um grande problema. O que a gente observa no sistema de segurança pública, que não é a polícia só, é que se tem um problema em todo o sistema. Ou seja, você pega as polícias, as ostensivas que são as militares, que fazem vigilância das cidades, pega a Civil que é investigatória, a Federal, se fala sempre como se o sistema de segurança fosse exclusivamente isso, não é. O Ministério Público é responsável também, o poder Judiciário também é responsável. O que temos hoje, basicamente? Uma grande disputa entre essas entidades que são a base do sistema, não temos integração [entre elas]. As pessoas dizem apenas que não são responsáveis por aquilo. As corporações são muito fortes, no sentido de não abrir espaço…Mas isso vai se resolver.
Sul21: O senhor foi ministro da Defesa nos governos de Lula e Dilma. Durante este tempo, os governos do PT conseguiram ter uma boa relação com as Forças Armadas. Como o senhor avalia a candidatura de alguém como o deputado Jair Bolsonaro (PSL), que se apresenta como candidato das FFAA?
Jobim: Mas não é. Ele é um capitão que saiu do Exército e virou político, o que é normal. As Forças Armadas brasileiras não tem nenhuma atividade política hoje. Ou seja, você não tem mais aquilo que se tinha antes do golpe de 1964, em que você tinha políticos-militares ou militares-políticos. Hoje são todos profissionais, submetidos ao sistema constitucional e ao poder civil.
Sul21: Pelo o que o senhor conhece das Forças Armadas, acha que o projeto dele os representa?
Jobim: Não, não é projeto das Forças Armadas. O fato de ele ter sido militar não significa que é algo que venha dos militares. Isso é confundir as coisas. Ele está fazendo um discurso que atende setores que estão saturados. Em relação à segurança pública, ao cansaço do politicamente correto, essas coisas todas. É verdade que há um viés na sociedade, no Brasil todo, que tem esse problema de achar que temos que pensar na proteção do cidadão e não propriamente na garantia dos direitos. Essa dicotomia que cada vez mais vai se agravando. Nós contra eles.
Sul21: O senhor acredita que existe a possibilidade de ele se eleger? Em cenários de pesquisa, sem o ex-presidente Lula, ele aparece como favorito.
Jobim: É difícil dizer quem vence. Competitivos? Bolsonaro é competitivo. O candidato que for indicado pelo presidente Lula, no Partido dos Trabalhadores, também é competitivo. O PSDB, com esses trabalhos todos que foram feitos pelo Geraldo Alckmin agora, também se tornou competitivo. Tem a Marina Silva, que é competitiva. O Ciro Gomes também é, mas muito estridente. A estridência do Ciro lhe cria problemas.
Sul21: Ou seja, impossível fazer projeções agora?
Jobim: Não tem, porque as pesquisas que mostram fulano com 20%, ciclano com 30, etc, são pesquisas que mostram que 60% não está interessado no assunto. O que vai acontecer com esses 60%? Observa que é um fenômeno mundial esse problema do desprezo à política, etc. Surgiu um fato novo, ultimamente, que é ter voz através das redes sociais. Antes, a voz se dava sempre através de. Agora, o sujeito se sente legitimado a ter a voz e você manobra através disso. Há também manipulação.
Sul21: Há poucas semanas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado brasileiro pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido em 1975, durante a ditadura militar. O Ministério Público Federal anunciou esta semana que vai reabrir o caso. Em umaentrevista ao Sul21, o jurista Fábio Konder Comparato, autor da ação que pediu a revisão da lei de anistia no STF, em 2009, disse que ouviu de um ministro que houve um jantar, na noite anterior à votação, em que o senhor, então ministro da Defesa, e o ex-presidente Lula pediram que eles rejeitassem a ação. O senhor confirma isso? Qual sua posição hoje a respeito?
Jobim: Jantar não houve. Eu continuo entendendo que o assunto da Anistia se encerrou, é um problema que foi resolvido naquela época, foi a forma política pela qual os militares saíram do governo, então não podemos voltar atrás. Aquilo foi bilateral.
Sul21: Nunca houve essa recomendação do governo, para que se rejeitasse?
Jobim: Eu participei. Como ministro da Defesa, tive contato, inclusive levando material para sustentar a defesa da Lei de Anistia. Mas, o presidente não. Ele não se envolveu nisso.
Sul21: O senhor não acha que o fato de nunca termos tido punição a esses crimes, hoje, ajuda movimento pró-intervenção militar, o revisionismo histórico que se cultiva?
Jobim: Não vale a pena. Nós temos que compreender o seguinte. Você não constrói futuro retalhando o passado. Você queima uma energia imensa com a retaliação do passado. Normalmente, quem pretende retaliar o passado é porque quer fazer uma afirmação de visibilidade no futuro. Hoje, se confunde muito transparência, nos setores públicos, com visibilidades individuais.
Sul21: Dê um exemplo.
Jobim: Não, não dou exemplo não (risos).
Sul21: Mas o senhor não acha preocupante ter como um dos favoritos nas eleições um candidato que fala do Coronel Brilhante Ustra, um torturador processado e reconhecido, como um herói nacional?
Jobim: Mas isso é democracia, não podemos proibir. Você não pode preterir proibir alguém, senão teria um sábio e não precisaria ter processo. Quem tem que resolver isso é a eleição.
Sul21: Em uma entrevista ao Conjur, o senhor falou de uma frase que aprendeu com seu avô. “Se estiver na dúvida sobre qual caminho seguir, siga o que o arrependimento for eficaz”. O senhor tem arrependimentos nesses anos de vida pública?
Jobim: Não, não tenho arrependimento nenhum. A frase se destina ao seguinte, quando você tem dúvidas do que vai fazer, faço A ou faço B, não tem nenhuma razão objetiva para escolher, tem que escolher o caminho que o arrependimento for eficaz. Se tu escolhe o caminho A, depois se arrepende, volta para trás. Agora, se escolhe o B e o B não adianta voltar, então escolha o A que é mais pragmático. Sempre fiz assim. É ótimo. Eu sempre tive mais sorte do que juízo.